Em defesa da dramaturgia portuguesa: incentivos e quota

Foi estabelecida na ordem dos 30% a quota para a Música Portuguesa no espaço relativo radiofónico. Por mais polémico que o assunto seja, no caso do Teatro é bem mais simples.

Nas recentes medidas anunciadas pela Senhora Ministra da Cultura, inclui-se uma por que a Sociedade Portuguesa de Autores se batia há anos: uma quota para a Música Portuguesa no espaço relativo radiofónico, que foi agora estabelecida na ordem dos 30%. Por mais polémico que o assunto seja, no caso do Teatro é bem mais simples. A Dramaturgia Portuguesa pode receber Incentivos e no Sector Público ou Publicamente Financiado não me parece que possa haver lugar a polémica. Se o Estado paga, é natural que o Estado proteja, o que até é fazer repercutir o seu investimento: não só na defesa do interesse dos Autores, mas também da Língua Portuguesa. Sem esta não há sequer Identidade Cultural.

Assim, ocorreu-me um plano meramente exemplificativo de modelo, para que se não argumente com os habituais empecilhos do “isso é muito complicado”. Não é, assim haja vontade política. Todavia, o que aponto são apenas eixos ‘virtuais’ para um modelo que carece de pormenorização e outra atenção mais aprofundada, naturalmente fora do âmbito de um artigo de opinião.

Mas, a muito curto prazo, mesmo antes de legislar sobre uma quota obrigatória, há uma Política de Incentivos, alguns deles a permanecer posteriormente, que pode antecipar e completar este quadro de Apoio à Dramaturgia Portuguesa. Por exemplo:

1) No sector da Produção Comercial Teatral não-financiada, a assumpção pelo Estado de 50% dos Direitos de Autoria Literária, naturalmente limitados segundo Tabela própria e até um montante máximo.

2) A abertura de um Programa de financiamento a Projectos especificamente destinado à criação e produção de Dramaturgia Portuguesa.

3) A criação de um Programa de Edição e Distribuição, até em parceria com a própria SPA, incluindo Publicações em linha na Web.

4) A criação de bolsas de apoio à Escrita Teatral de médio e longo prazo (à semelhança do que já a Fundação Gulbenkian realizou) para trabalho de campo com estruturas apoiadas pelo Estado.

5) Para estas mesmas estruturas, a consideração de uma bonificação relativa a cada produção apresentada nos Cadernos de Encargos a que se submetam por um período de 5 anos(1) de forma normativa com percentagens e não abstracta.

No médio prazo, no quadro de uma legislação referente a essa quota, no que concerne a Teatros Públicos (Teatros Nacionais) e estruturas financiadas pelo Estado podem adoptar-se estes (ou outros idênticos) pontos:

a) Em cada 4 produções, 1 deve ser de Dramaturgia Portuguesa.

b) Para efeitos dessa quota, as obras escritas em Língua Portuguesa do Mundo Lusófono e dialectos derivantes, como Crioulo, Mirandês ou outros, poderiam contar a 50%.

c) Igualmente, as reposições, no prazo inferior a 5 anos de distância da estreia, só contariam a 50%. Tal como os textos do Programa da Disciplina de Português(2), Criações Colectivas, autorias dos próprios Directores Artísticos ou Encenadores; ou adaptações de textos originais não teatrais de Língua Estrangeira.

d) Às produções com textos com menos de 50 anos de escrita seria útil, em contrapartida, atribuir-se uma bonificação de 50%.

d) Como valor limite de contagem, a aplicação normativa poderá resumir-se a um máximo de 12 produções em 5 anos. Isto é: para quem realiza mais produções nesse período, a obrigatoriedade caduca nessas restantes.

e) Nos casos de Teatro Físico, Pantomima ou outros géneros de natureza específica, cuja verbalidade é inexistente ou de importância secundária, a quota pode transferir-se para a encenação ou outra autoria própria(3).

f) Ao incumprimento devem corresponder sanções até ao limite de suspensão de financiamento até reposição da quota.

g) Para os Teatros Nacionais é exigível que se inclua a obrigatoriedade no Caderno de Encargos, Programação e Carta de Conduta das Direcções Artísticas(4).

h) No que concerne à Rede Pública de Teatros e Cineteatros – matéria sobre a qual evito pronunciar-me, pelo menos para já – os mesmos princípios podem ser transpostos em outras formulações, claro.

Aqui apenas ‘demonstrandum est’ de que não é nenhum ‘bicho de sete cabeças’ concretizá-lo. Nem isto, nem o resto. E prevendo a argumentação, falaciosa, de que tais medidas são dirigistas ou ameaçam a Liberdade de Criação, avanço já que, se me acolherem o próximo artigo, é sobre isso mesmo que me debruçarei, pois até já está escrito: entendo que é precisamente o contrário.

(1) Em verdade este período de 5 anos não é o que vigora. Há-os de 2 e de 4 anos para os chamados Apoios Sustentados; e no projecto de decreto-lei que foi suspenso por via das medidas no quadro da pandemia, passam todos a 3 anos, embora com possibilidade de prorrogação automática para mais 2. A mim parece-me que uma fiscalização, que devia existir com todo o rigor, é que pode prever a suspensão dos financiamentos, pelo que não vejo que impedimento possa haver para serem de 5 anos. O que é impensável, mas é o que se tem passado, é a ausência de ‘Encargos’, como obriga qualquer forma e fórmula que envolva o recurso a dinheiros públicos. Havendo-o, considerar um total de 12 produções para este período, nas estruturas que se integrem num Serviço Nacional de Cultura (não existe, mas devia existir), não é nada de mais. Outro tipo de apoios e financiamentos (incluindo projectos de autoria) devem ser considerados de modo diverso. Mas tudo isto pressupõe uma abordagem distinta do que tem acontecido ao longo de anos; e que o projecto de decreto-lei a que me refiro não faz, antes se inspira num modelo que pede passagem compulsiva à reforma. Numa reforma que faça emergir uma Política Cultural estruturante. Porque a que (não) tem existido peca mais do que por omissão: a prática faz dela um elemento desestruturante.

(2) Esta medida deveria ser acompanhada de uma outra de valorização do trabalho com Escolas, em articulação com o Ministério da Educação. Até sou mesmo de parecer que pode haver estruturas unicamente vocacionadas para tal. Mas cada coisa em seu lugar. Importa é evitar que, por um expediente, fique por cumprir o desígnio do apoio à Dramaturgia Portuguesa e a necessária massa crítica a formar a partir do hábito recorrente da mesma.

(3) Antes que seja ligado o ‘complicador’, explica-se que estas diferenciações podem ser estabelecidas a montante, na base de diferentes categorizações da natureza dos apoios, separados conformes a elas. Aliás, julgo evidente que tudo anda ligado e pede mais do que medidas avulsas. Tudo é complexo sim, mas nada complicado, como tentarei demonstrar ponto por ponto.

(4) O normal seria que as Direcções Artísticas dos Teatros Nacionais cumprissem uma Carta de Conduta, Programação e Caderno de Encargos, do domínio público, mas isso, também, não existe. Porém esse é outro assunto. Só para evitar ruído, desde já fica salvaguardado que no que se refere aos Teatros Líricos ou de Ópera, os critérios relativos aos libretos e/ou composição musical têm de ser outros. É evidente, até pelo número escasso da nossa produção operática, que alguma quota não é aritmeticamente transponível. Todavia, algo necessita de ser feito. Por exemplo, começar pelo incentivo a libretos traduzidos: não como política única, mas necessária também. Até para universalizar o acesso e interesse popular por um género tido por ‘nicho’. É-o, mas não o deveria ser.

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