Na choldra, mas tratadas com dignidade, por favor

Disseram-nos que se acontecer o contágio numa ala, vai tudo para o pavilhão de quarentena para partilhar o bicho. Por isso, é preciso estar atenta. Embora seja difícil uma pessoa proteger-se de uma coisa invisível.

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Disseram-nos que, para nós, nem máscaras nem desinfectantes. Disseram-nos que, para nós, não havia dinheiro para isso, que não merece a pena e que se o bicho nos pegar, tanto melhor, menos umas quantas a ocupar espaço na choldra.

Nos lavatórios mantém-se a barra de sabão azul e branco e a água corrente, e devíamos agradecer o “privilégio”, disseram-nos com as máscaras postas. Disseram-nos que água e sabão azul e branco chegam bem, que para as nossas mãos sujas não há solução. Estou a dividir cela com uma preventiva. Ainda não foi condenada e já está a levar na tromba. Isto agora é assim, quem aguarda o julgamento divide cela com criminosas a sério, como eu.

Tenho pena da rapariga. Traficou dois quilos de haxixe e parece um pardalito assustado nesta gaiola. Eu acho graça, mas não sou burra, sei bem que não devia ser assim. Não há espaço para todas, então colocam-nos juntinhas, mesmo na circunstância de pandemia, querem lá saber. É por isso que não percebo bem por que nos limitaram as idas ao banho.

Disseram-nos que não há necessidade de estarmos sempre no “bem bom”, como se um duche de merda de cinco minutos fosse algum spa. Disseram-nos que o espaço dos chuveiros facilita os contágios e eu, sinceramente, que nem curto tomar banho, já me passou pela cabeça que querem transformar isto numa espécie de Auschwitz, mas ao contrário. Querem matar-nos na nossa própria imundície.

Fui condenada, já estou a pagar pelo que fiz. Não entendo este destrato constante. Quero manter a minha dignidade. Disseram-nos para tomarmos uns comprimidos e eu não sei o que raio estamos a meter no bucho, nem ninguém nos explica. Tenho quase a certeza de que é alguma coisa para nos manter bem mansas, e há aqui muitas tipas que são adeptas das drogas e ficam todas contentes, mas a cena é que isto não é legal, de certezinha.

Sempre que tomo aquilo sinto-me anestesiada, de maneira que das últimas vezes recusei. Prefiro continuar a chafurdar lúcida nesta pocilga. E há mais, nunca mantemos a distância de segurança, na cantina então é de rir, estamos todas a comer, literalmente, umas em cima das outras como já estávamos antes da pandemia.

Sabem como é, somos muito generosas, partilhamos as doenças irmãmente. Por exemplo, na semana passada houve um surto de sarna. Andámos a coçar-nos durante dias. Ninguém sabe quem é que partilhou o cabrão do parasita com as presas do pavilhão inteiro. Disseram-nos que se houver um surto de covid-19 seremos colocadas noutro pavilhão durante 14 dias, mas sem máscaras na mesma. Ficamos todas em conjunto, quem tiver e quem não tiver.

Disseram-nos que se acontecer o contágio numa ala, vai tudo para o pavilhão de quarentena para partilhar o bicho. Por isso, é preciso estar atenta. Embora seja difícil uma pessoa proteger-se de uma coisa invisível. Eu, por exemplo, bebo seis cafés por dia. Acabo o dia com as mãos a tremer, a mim não me apanham a descansar a pestana. Estou presa, mas não sou parva. Sei perfeitamente que estamos no final da cadeia alimentar. Isto não nos disseram. Disseram-nos que somos mulheres e estamos presas e que temos de ter paciência. Como se não soubéssemos que vai dar ao mesmo.

Só pedimos que nos tratem com alguma dignidade. Na choldra, sim, mas tratadas com dignidade, por favor. Não nos ouviram. Não nos ouvem. Foi por isso que pedimos à Cláudia Lucas Chéu que dissesse por nós.

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