“Efeito surpresa” acabou e com ele “o consenso espontâneo” sobre as proibições

O dever cívico de recolhimento é entendido e cumprido de formas diferentes por diferentes pessoas. Há quem considere que faltou capacidade ao Governo para comunicar e quem veja aqui o sinal do fim do consenso espontâneo gerado pelo primeiro impacto da pandemia.

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Ruas do Porto vazias com o novo confinamento imposto a 15 de Janeiro Paulo Pimenta

Restrições no interior com a porta aberta para o exterior em armazéns de venda de artigos variados, enquanto lojas de roupa, sapatos ou outros bens são obrigadas a fechar; pessoas que ficam à porta dos cafés a consumir o que compraram; restaurantes que, para além da entrega ao domicílio (para evitar contactos), sobrevivem com o take-away, e isso resulta afinal em filas com tantas ou mais pessoas do que aquelas que poderiam estar na esplanada cumprindo o distanciamento.

Carla Cruz, professora auxiliar do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade em Lisboa, juntaria outros exemplos, como a continuação das actividades políticas e o não encerramento das escolas, para explicar que, desta vez, ao contrário do que aconteceu em Março e Abril, a sociedade não viu uma lógica nas medidas do confinamento.

Também João Pissarra Esteves, professor associado da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade de Lisboa, analisa o que hoje sucede à luz do que constatou em Março de 2020. 

A comparação feita é, porém, de outra ordem. “Há um ano, o efeito surpresa [da pandemia] permitiu uma situação verdadeiramente excepcional. Houve um silenciamento da pluralidade de vozes e um certo consenso surgiu espontaneamente em torno de um discurso oficial.”

​"Hoje a situação comunicacional é muito mais complexa do que a do primeiro confinamento quando a comunicação pública, oficial, do Governo, era prevalecente”, observa. Há as redes sociais, as vozes presentes na comunicação social em geral e os actores políticos, descreve. “Tudo está diferente. Hoje não há ninguém que não se sinta capaz de reivindicar a sua razão para qualquer que seja a medida.”

E descreve um contexto em que todos têm razão ou julgam tê-la: “há a razão daqueles que consideram que podem fazer aquilo que não é permitido fazer” e “há aqueles que consideram que não se poderia fazer aquilo que é permitido”. A discussão sobre a abertura ou não das escolas está por detrás disso agora, como o 1º de Maio e a Festa do Avante estiveram anteriormente, considera.

As pessoas reagem, colocam reservas ou apontam críticas à mensagem oficial sobre o que se pode ou não fazer – em pormenor e em que circunstâncias. “Termos de chegar ao ponto de destrinçar entre o ir ao jardim e o estar no jardim”, como fez já esta semana o primeiro-ministro na comunicação do reforço das medidas antes anunciadas, é um sinal disso mesmo, acrescenta.

Critérios diversos

Para Carla Cruz, é a dúvida na razoabilidade das medidas que lhes retira eficácia. "Há uma interpretação muito subjectiva do dever cívico de recolhimento”, sintetiza a especialista em Sociologia da Comunicação. "Isso leva a um comportamento mais relaxado”, menos cumpridor das restrições impostas. 

As pessoas estão obrigadas ao isolamento, cortam com os contactos familiares e sociais, os restaurantes, os hotéis, os cinemas e todos os espaços culturais fecham, mas os eventos políticos continuam, exemplifica a professora que também evoca os casos do 1º de Maio e da Festa do Avante, e agora as acções de campanha dos candidatos presidenciais [suspensas esta quarta-feira pela candidata do Bloco de Esquerda].

Foi transmitida uma diversidade de critérios, diz Carla Cruz referindo-se especificamente ao primeiro anúncio (sobre o novo confinamento) feito por António Costa na semana passada.

A começar pelas dúvidas e a imensa expectativa anteriores à decisão de não encerrar as escolas para os maiores de 12 anos, a partir do 7º ano de escolaridade, assunto que está prestes a ser reavaliado ainda esta quarta-feira.

“O primeiro-ministro diz que auscultou especialistas e encontrou contradições” e isso teve “um impacto negativo na percepção das pessoas”. O primeiro-ministro transmitiu afinal a imagem de que estaria “um pouco perdido quando disse que, perante as contradições, ia tomar medidas políticas”, continua a professora de Ciências da Comunicação, com um doutoramento na área de especialidade da Sociologia da Comunicação. 

“Quem frequenta zonas escolares apercebe-se que dentro das escolas de facto há um conjunto de circunstâncias que são controladas”, nota Carla Cruz. “Mas assim que os jovens saem das escolas, logo ali junto ao portão, aglomeram-se, alguns tiram as máscaras para fumar ou para comer. Quem vê isto, apercebe-se de uma incoerência relativamente ao conjunto das medidas”, sublinha.

“A ausência de uma restrição sólida e rigorosa resultou num circuito de pessoas em constante movimentação, e isso levou os outros a relaxarem”, por não verem o propósito de uns relaxarem e outros não, explica. "As pessoas quando não compreendem não fazem.”

Mensagens nas redes

Nas redes sociais, cidadãos com influência ou figuras públicas mostraram fotografias das suas famílias a passear, transmitindo uma mensagem de usufruto da natureza e das actividades ao ar livre, o que teve influência nos seus seguidores, nota Carla Cruz. Ficou a ideia de que, se uma pessoa faz, os outros também podem fazer, acrescenta. 

“As pessoas racionais, adultas, tendem a seguir um comportamento coerente e uma lógica”, enquadra a académica. "Vêem que no meio de um confinamento misto ainda se realizam as eleições presidenciais e as respectivas acções de campanha, e não entendem.” 

Além do mais, acrescenta, “a comunicação deste aspecto [da realização das eleições] praticamente foi ausente, nada disto foi explicado”. O mesmo aconteceu na primeira vaga com o 1º de Maio e a Festa do Avante, acrescenta.

“O que as pessoas vêem é que têm de se conter, mas os eventos políticos não.” Num contexto em que estão exaustas com a situação e muito cansadas dos políticos, cria-se “uma suspeição” à volta do sentido das regras anunciadas. 

No caso concreto, há espaço para pensar que a maneira como as medidas foram comunicadas pelo Governo podia ser melhorada, concede João Pissarra Esteves, que conclui, porém, que “a comunicação não é a variável fundamental [no entendimento] dos problemas que a sociedade atravessa”. 

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