Mesmo com confinamento similar ao de Março, podemos vir a ter 1100 doentes com covid em cuidados intensivos

Cenários feitos pela NOVA IMS projectam efeitos de vários níveis de confinamento na progressão da pandemia. Presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos diz que a taxa de mortalidade nas unidades de cuidados intensivos tem vindo a crescer.

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Rui Gaudêncio

Mesmo com um confinamento próximo do de Março do ano passado, quer em nível de mobilidade quer de comportamento relativo ao cumprimento das regras de protecção, pode já não ser possível evitar que os cuidados intensivos cheguem às 1154 camas ocupadas por doentes com covid-19 no final da primeira semana de Fevereiro, estimam especialistas da NOVA Information Management School (IMS), que tem vindo a analisar a evolução da pandemia. O presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos diz que, para se conseguir dar uma resposta adequada a todas as solicitações, as taxas de ocupação das unidades de cuidados intensivos não devem ser superiores a “80% a 85%”. E admite que a taxa de mortalidade dentro destas unidades tem vindo a crescer.

Para traçar estas projecções, os especialistas usaram um modelo epidemiológico com diversos parâmetros, entre os quais o nível de contacto entre as pessoas susceptíveis de apanhar a infecção e os doentes infectados. “Essa transmissibilidade, quando a incidência é alta, pode ser controlada com um lockdown, separações físicas, como aconteceu no primeiro confinamento e noutros posteriores. Conhecendo o comportamento das pessoas e a cenarização do efeito do novo lockdown nessa transmissibilidade, criámos três cenários”, explica ao PÚBLICO Pedro Simões Coelho, presidente do Conselho Científico da NOVA IMS e coordenador deste projecto.

Num dos cenários, a quebra da taxa de transmissibilidade seria 90% da de Março (ou seja, uma mobilidade e um comportamento de uso de máscara, distanciamento social e desinfecção das mãos que deixaria este confinamento muito próximo do da primeira vaga), fazendo com que o pico de novos casos a rondar os 10.500 fosse alcançado entre 19 e 21 deste mês e que a 7 de Fevereiro a incidência rondasse os 4407 novos casos. Porém, é preciso ter em conta que os efeitos desta travagem só serão visíveis nos internamentos e nas mortes semanas depois. Por isso, mesmo neste cenário, a estimativa é de 6710 internados, dos quais 1154 em cuidados intensivos.

Existem ainda outros dois cenários, um com uma quebra da transmissibilidade de 60%, em que o pico de novos casos seria alcançado entre 21 e 23 de Janeiro (cerca de 11 mil novos casos), levando a uma incidência de 6505 novos casos a 7 de Fevereiro, com 7446 doentes com covid-19 internados, dos quais 1193 em cuidados intensivos. Já no cenário de uma quebra da taxa de transmissibilidade de 30%, o pico seria de cerca de 12.500 novos casos entre 28 e 30 deste mês, com uma incidência de 11730 novos casos e 8705 doentes internados – dos quais 1247 em cuidados intensivos – a 7 de Fevereiro.

“Acreditamos que nos últimos dias devemos estar num cenário entre os 30% e 50% de quebra de transmissibilidade em relação a Março”, diz o responsável, salientando que as projecções deixam “o número de doentes internados em cuidados intensivos próximos da capacidade total nacional”. No SNS, o número deste tipo de camas ronda as 1200 e no privado, segundo dados do INE referentes a 2018, havia 212.

“Estamos numa situação de enorme pressão para o SNS e em que nos aproximamos de uma situação em que os hospitais correm o risco de ficarem esgotados e já não ser possível transferir doentes. Mas ainda estamos a tempo de evitar uma situação de ruptura se levarmos o confinamento muito a sério”, salienta Pedro Simões Coelho, lembrando também o efeito que a pandemia tem sobre os restantes doentes ao limitar a capacidade de internamento e de realização de cirurgias.

Para o coordenador do projecto, “poderia ser mais eficaz, quer em termos de saúde quer de economia, se houvesse um confinamento com medidas mais pesadas mas mais limitadas no tempo, do que medidas mais leves e mais prolongadas”. E faz questão de destacar que “não se pode criar a ideia de que toda a população é incumpridora”. “Na primeira semana de Janeiro, as deslocações a locais de retalho e diversão foi 10% inferior à verificada três semanas antes. Houve também uma redução de 11% nos transportes públicos e um aumento da presença nas zonas residenciais. Os portugueses intensificaram as restrições, o problema é que a pandemia atingiu um nível que é impossível controlar só com auto-restrições”, explica.

Taxa de mortalidade nas UCI está a aumentar

A taxa de mortalidade dos doentes com covid-19 nas unidades de cuidados intensivos (UCI) tem vindo a aumentar. Subiu da primeira para a segunda vaga e agora está de novo a crescer, admite o presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos, João Gouveia. “Temos muito mais doentes, mais graves, e a chegar mais tarde [aos cuidados intensivos]. E todos os atrasos prejudicam o prognóstico. Está provado cientificamente que o acesso a medicina intensiva é uma das determinantes da mortalidade”, explica o médico que também preside à Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19.

Para se conseguir dar uma resposta adequada a todas as solicitações, as taxas de ocupação das unidades de cuidados intensivos não devem ser superiores a “80% a 85%”. E nesta terça-feira de manhã, em Lisboa e Vale do Tejo (LVT), a taxa de ocupação das UCI para doentes com covid-19 era de 97%, adianta. “Estamos a abrir mais camas todos os dias. Estamos a entrar dentro de blocos operatórios, salas de recobro, enfermarias. Mas todas as camas que abrem ficam logo ocupadas. E há um limite”, avisa. Esse limite é de “pouco mais de 1200 camas” de cuidados intensivos a nível nacional, mas para todo o tipo de doentes, com covid e com todas as outras patologias.

Se as projecções ainda provisórias da equipa de Manuel Carmo Gomes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, se confirmarem – e estas apontam para 840 a 850 doentes em cuidados intensivos entre 9 e 11 de Fevereiro –, na prática sobrarão pouco mais de 250 camas para todas as outras patologias, “e isso não chega”, observa João Gouveia. Aí, enfatiza, “vai ter de haver uma mistura de ‘doentes covid’ e ‘não covid’ e fazer-se triagem de catástrofe”.

Ainda não estamos nesse ponto. Nesta terça-feira de manhã, na região centro, a taxa de ocupação em cuidados intensivos para doentes com covid-19 era de 92%, mas o Norte estava mais folgado, com 81%, e havia ainda a possibilidade de se criarem mais algumas camas nos próximos dias, sendo o principal problema conseguir recursos humanos especializados. “Estica-se, estica-se mas chega uma altura em que já não dá para esticar mais. E nessa altura será o salve-se quem puder”, diz.

O médico faz questão de frisar que em medicina intensiva “não se escolhe um doente por ele ser ‘covid’ ou ‘não covid’”, tratam-se “os doentes mais graves”. O problema é que, como a covid-19 é extremamente transmissível, os doentes têm de estar separados uns dos outros, isolados em quartos, quando possível, e com enfermarias inteiras adstritas a estes casos.

Nesta terça-feira de manhã nas unidades de cuidados intensivos com “doentes não covid”, as taxas de ocupação eram inferiores em LVT (76%) e no Centro (67%). No Norte, a taxa de ocupação para pacientes ‘não covid’ era exactamente igual à dos com covid-19 (81%), especificou.

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