E tudo o referendo levou

2021 já se arrasta e ainda agora se abriu o bolo-rei. Tentamos encarar a nova volta ao sol com optimismo mas sabemos, dentro de nós, que nenhum grande ano se inicia com a instrução para a população ficar em casa por causa de uma doença mutante, omnipresente e invisível, enquanto a nação se empareda.

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LUSA/NEIL HALL

Metade dos fogos-de-artifício lançados a 31 de Dezembro festejaram a perda do direito de liberdade de circulação, de viver, trabalhar, viajar, apaixonar, morrer e nascer num continente inteiro. A vontade de celebrar o que quer que seja é tão grande que até já se comemoram perdas de liberdade. Lembro-me perfeitamente de acordar na madrugada de 24 de Junho de 2016 e olhar para o telefone em choque e consternação: o país que eu tanto queria afinal não era o país que eu queria. 52% dos britânicos que me proporcionaram inúmeras oportunidades de crescimento pessoal e profissional decidiram virar as costas ao continente europeu e trilhar o seu próprio caminho. Senti-me pessoalmente traído, como se acabasse de descobrir que a minha amante tinha outro amante. Não voltei a pregar olho e fui para o trabalho ouvir piadolas sobre estrangeiros que muito se assemelhavam ao discurso de um dos candidatos à presidência da República Portuguesa.

Depois de cinco anos de parto desde o malfadado referendo, um acordo entre a União Europeia e o Reino Unido foi finalmente martelado à última hora. O impacto deste Brexit na economia europeia e britânica é bastante quantificável e a lista de partes da nossa futura vida que virão a ser afectadas é interminável. Por enquanto pouca diferença se nota no dia-a-dia pós-europeu. Confinados em casa, não esbarramos com as barreiras auto-impostas com a mesma regularidade como se andássemos a laurear a pevide. Sabemos que, eventualmente, haverá falta de certos alimentos ou aumento estratosférico dos preços de alguns bens essenciais, a curto prazo. Mas adaptamos a nossa culinária como resposta: no próximo Natal servimos fish and chips à Brás, por exemplo. Acabaram-se as malas de porão repletas de enchidos (ou até as sandes mistas contrabandeadas na mochila) e as portas abertas em qualquer empresa ou fronteira. Para contrabalançar adquirimos a dupla nacionalidade, tornando-nos ex-migrantes, e passamos a maior parte das férias na Costa del Brighton.

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Figura 1 – O heat map de 2021.

Desde o interminável Brexità forma como se tem lidado com a crise do coronavírus, o que vai ficando cada vez mais claro é que a atribuição a minorias ou instituições globais dos problemas estruturais resultantes de décadas de cortes (saque?) aos serviços públicos não os resolve. Os hospitais já estão em ruptura, a reabertura das escolas já foi adiada e o subsídio de manutenção de empregos estendido até Abril. Pelo menos um em cada 30 dos meus vizinhos anda por aí a espalhar magia enquanto brincamos aos confinamentos. Já cheira a 2020: preparamo-nos para mais um ano de confinamento e quando dermos por ela já estamos no Verão com um heat map a assemelhar-se ao dos inspectores do SEF.

2021 já se arrasta e ainda agora se abriu o bolo-rei. Tentamos encarar a nova volta ao sol com optimismo mas sabemos, dentro de nós, que nenhum grande ano se inicia com a instrução para a população ficar em casa por causa de uma doença mutante, omnipresente e invisível, enquanto a nação se empareda. Aguardamos ansiosos por essa vacina sebastiânica. Para manter a sanidade mental, vamo-nos também focando nos pontos positivos: o Reino Unido deixou, finalmente, de ser o líder da União Europeia em termos de excesso de mortalidade e perda do PIB.

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