Vacinação anti covid-19: universalidade e equidade

Assegurar equidade no plano de vacinação é tratar diferente o que é diferente de forma a dar prioridade a quem tem maior risco. Além da idade e das morbilidades, a fragilidade social e económica devia também ser considerada como fator ponderador.

Parece claro que as medidas de contenção da pandemia, em especial o distanciamento e o uso de máscaras, não têm surtido o efeito desejado, em Portugal como em muitos outros países. O delicado equilíbrio entre travar o contágio e evitar o colapso da economia (com decorrente agravamento do colapso social e sanitário), com adopção de medidas pouco musculadas, o incumprimento das normas, a fadiga duma situação que dura já há mais de um ano, a banalização da catástrofe, são alguma das causas da posição tristemente cimeira que Portugal ocupa, liderando na Europa, à data de hoje, o maior número de casos diários por milhão de habitantes.

O sistema de saúde está em rotura e parecem inevitáveis medidas mais rigorosas e seu cumprimento cívico mais consistente. No entanto, a grande esperança virá da obtenção de uma imunidade de grupo, conseguida sobretudo através de vacinação universal. A universalidade e gratuitidade da vacina têm sido afirmadas repetidamente pelos responsáveis, mas levantam-se questões como a acessibilidade em tempo útil e a equidade na sua administração. O primeiro destes pontos não dependerá da vontade dos governantes, mas sobretudo das condições de manufatura e distribuição, da responsabilidade das empresas produtoras. Quanto à equidade, este princípio prende-se com a garantia de acesso de todos assegurando uma priorização em condições de justiça.

O Comittee on Vaccination and Immunization do Reino Unido sugeriu que as pessoas com mais de 65 anos, os doentes pertencentes a grupos de risco e os profissionais de saúde deviam ter prioridade no acesso à vacina. Em Portugal, a opção foi a de vacinar em primeiro lugar os profissionais de saúde, o que se compreende como forma de contribuir para que o sistema de saúde não colapse. É menos compreensível a opção por não incluir no grupo mais prioritários os mais altos responsáveis políticos e militares: essa “modéstia” levada ao extremo pode ser potencialmente lesiva para o melhor interesse da comunidade e isso devia ser tomado em conta. O plano prossegue por ordem decrescente de vulnerabilidade e é correta a decisão de vacinar os idosos internados em lares logo de seguida.

Quanto às patologias elegidas como prioritárias, a listagem obedece ao que tem sido publicado na literatura científica na experiência de outros países como a China, os Estados Unidos, a Itália, o Reino Unido, entre outros. No que respeita às doenças cardiovasculares, foram citadas desde o início a insuficiência cardíaca e a doença coronária, a que se viriam a juntar mais duas situações, a hipertensão pulmonar e as miocardiopatias, aliás de acordo com a orientação seguida por outras entidades internacionais como o prestigiado CDC (Centers for Disease Control and Prevention) dos Estados Unidos.  

Com a colaboração das Sociedades Científicas foi possível a Task Force estratificar dentro de cada situação os mais prioritários entre os prioritários (como referência, calcula-se que só de insuficiência cardíaca padeçam mais de 300.000 portugueses, naturalmente em diferentes situações de risco). Não conhecemos dados nacionais (não estão disponíveis ou nem sequer existem) que, além da idade, sejam a base da fundamentação para a propostas de priorização. Usamos fontes de outros países que têm esses dados publicados em revistas científicas. Do mesmo modo, não são conhecidas as circunstâncias socioeconómicas dos doentes afetados em Portugal e suas complicações, mas sabe-se de outros países (Lancet Diabetes Endocrinol 2020; 8: 813–22) que as pessoas que vivem em áreas com maiores níveis de pobreza e menores níveis de educação, têm as maiores taxas de hospitalização e uma probabilidade de morrerem de covid-19 quase dupla. O impacto em certas minorias étnicas é compreensível pois tendem a ser mais carenciadas em termos socioeconómicos, vivem em grandes aglomerações populacionais e tendem a ter maior exposição quer em transportes públicos, quer em locais de trabalho.

Assegurar equidade no plano de vacinação é tratar diferente o que é diferente de forma a dar prioridade a quem tem maior risco. Além da idade e das morbilidades, a fragilidade social e económica devia também ser considerada como fator ponderador.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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