Uma eleição de alto risco

Se se confirmar que a taxa de abstenção virá a atingir níveis astronómicos todos os cenários ficam em aberto.

Até há duas ou três semanas, a reeleição à primeira volta do atual Presidente da República era encarada como um dado adquirido e uma inevitabilidade e o processo eleitoral conducente a essa esmagadora confirmação referendária como algo quase entediante, um mero pro forma.

Entretanto, o brutal agravamento da situação sanitária, com Portugal a ficar no lugar cimeiro da tabela europeia dos países com mais casos e com mais óbitos, e o endurecimento das medidas de urgência sanitária (vulgo confinamento), poderão ter introduzido perigosos fatores de incerteza naquele processo.

Na realidade, prognostica-se que a taxa de abstenção virá a atingir níveis astronómicos e, com isso, todos os cenários ficam em aberto. Foi assim que em França, no passado ano de má memória, em pleno confinamento, uma coligação de ecologistas radicais e de partidos de esquerda conseguiram a proeza de conquistar, entre muitas outras, as grandes municipalidades de Lyon, Bordéus e Marselha, desalojando os anteriores poderes autárquicos, controlados por moderados de centro e centro-direita, que durante décadas as governaram.

É que o eleitorado central, acossado de um extremo receio de contaminação viral e uma boa dose de falta de coragem, se deixou ficar em casa, enquanto todos os ativistas radicais e os seus partidários se deslocaram maciçamente às urnas. Eleitorado central esse que hoje, tardiamente, chora e geme ao ter que suportar as medidas radicais e totalmente irrealistas já tomadas nessas aglomerações urbanas pelos novos senhores das autarquias.

Ora este risco existe em Portugal, tanto mais que as sondagens conferem a esse eleitorado central uma sensação de que tudo está decidido e que no dia 24 não será necessário saírem do conforto do seu confinamento doméstico ou da prática de outras atividades dominicais.

A isto acrescem outros fatores de confusão e de risco, a começar por cadernos eleitorais inflacionados, com um número de eleitores absolutamente desproporcionado (10,8 milhões de “eleitores”) relativamente à população residente de 10,3 milhões de habitantes, incluindo pelo menos cerca de dois milhões de menores de 18 anos. É certo que uma parte substancial são os nossos emigrantes, que deveriam ter, aliás, um acesso muito mais facilitado ao voto.

Mas largas centenas de milhares são mortos, o que em todas as latitudes é um condimento para possíveis fraudes eleitorais, o que não deixa de ser assustador e desde já coloca em causa as habituais análises da taxa de abstenção.

Como se isto não bastasse para dissuadir os eleitores a acorrer às assembleias de voto, fomos confrontados no domingo passado com filas de quilómetros que puseram à prova a paciência (e a capacidade de resistência ao frio) dos cidadãos que optaram pelo voto antecipado, quiçá para evitarem justamente dificuldades e demoras no dia 24 de janeiro. A desorganização foi imperdoável e haverá que extrair as devidas consequências das anomalias observadas neste ensaio geral!

A campanha também não foi brilhante, esmaltada por insultos, insinuações e atitudes que só podem desprestigiar os candidatos, com a exceção de Marcelo que, confrontado com graves problemas de governação associados ao surto exponencial da pandemia, se acantonou nas suas funções presidenciais e colocou na sombra o Presidente-candidato (exceção também para os moderados Mayan Gonçalves e Tino de Rans!).

Ora este quadro de circunstâncias poderá, se se confirmar uma enorme abstenção do eleitorado mainstream do PS e do PSD e o acesso às urnas em massa dos indefetíveis partidários dos candidatos que se apresentam como radicais – pelo menos na violência do verbo e das ideias –, provocar um estranho resultado e uma segunda volta que, a acontecer, será cheia de embustes e propensa a dividir os portugueses num momento em que o cimento da coesão tem que prevalecer, para se poder combater eficazmente a covid e as suas consequências económicas e sociais, a começar por um enorme alargamento das desigualdades e um forte recuo da produção e do rendimento nacional.

Na realidade, estes condimentos não auguram nada de bom, embora reste a esperança de que todos os portugueses percebam a importância do que está em jogo e compreendam que a vivência da democracia não permite cedências à covid e atitudes de perigoso alheamento – sob pena de, por uma vez, o resultado da eleição poder não espelhar a vontade do povo soberano (soberano real e não apenas o “soberano virtual” que se fica pela expressão das sondagens).

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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