Um raro dia de luz e esperança

Esta quarta-feira, dia frio e ensolarado em Washington, os Estados Unidos livraram-se de um líder iliberal e indecente e abriram as portas a uma nova expectativa. Nada está certo. Mas basta essa simples mudança para que seja um dos poucos dias luminosos destes tempos cinzentos

O dia ensolarado e frio de Washington em que Joe Biden se tornou o 46.º Presidente dos Estados Unidos sugere uma boa metáfora. A luz pode muito bem sublinhar a constatação de que “a democracia prevaleceu”, que o golpismo institucional ou anárquico instigado por Donald Trump não se impôs ao Estado de direito nem à vontade soberana dos cidadãos. O frio há-de ser um óbvio testemunho do cenário difícil que Joe Biden e a sua administração têm pela frente. Uma missão quase impossível para um homem quase normal, na expressão feliz de Teresa de Sousa. De Roosevelt, que venceu a Grande Depressão e a II Guerra, a Lyndon B. Johnson, o texano que impôs os direitos civis, os Estados Unidos têm experiência de casos assim.

Como em outros momentos da sua história recente, seja o Vietname ou o Iraque, os Estados Unidos vão ter de invocar o seu dinamismo ou a solidez das suas instituições para recomeçar. Vai ser preciso sarar feridas raciais, aproximar extremos políticos consolidados nas ruas ou no Congresso, colar uma sociedade cada vez mais desigual, injusta e revoltada. Vai ser preciso restaurar o sentido de missão que está na génese dos Estados Unidos, recuperando a sua imagem de referência da democracia liberal – ou do mundo livre, como em tempos se dizia. A nova globalização que se entrevê no pós-pandemia, ou o combate às alterações climáticas, precisa desse país.

Joe Biden não é um progressista, mas deixa antever resposta a muitas destas preocupações. Uma nova política fiscal, o reforço do salário mínimo, o diálogo inter-racial, a recusa do sectarismo de classe, a adesão ao multilateralismo, a restauração das alianças externas tradicionais são bons princípios. Mas o mais importante de tudo é que, com ele, “a democracia prevaleceu”, como fez questão de sublinhar. Usar esse triunfo, por agora fugaz, para eliminar as raízes da direita radical é a sua grande tarefa.

Precisamos que corra bem. Para que o exemplo americano regresse à sua matriz de democracia (imperfeita, por vezes violenta e injusta, mas baseada na lei e no respeito da liberdade individual). Para que Washington deixe de inspirar o radicalismo de direita que vai crescendo na Europa. Para que o bloco do Ocidente colado por ideais políticos, valores civilizacionais e memórias partilhadas seja uma força consistente num mundo que parece caminhar para o caos.

Esta quarta-feira, dia frio e ensolarado em Washington, os Estados Unidos livraram-se de um líder iliberal e indecente e abriram as portas a uma nova expectativa. Nada está certo. Mas basta essa simples mudança para que o 20 de Janeiro de 2021 seja um dos poucos dias luminosos destes tempos cinzentos.

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