Os “salvadores” da democracia

O medo, a criação de um inimigo comum e a apresentação de verdades absolutas para problemas demasiado complexos serão sempre as principais armas do político populista e dito anti-sistema.

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JOSÉ SENA GOULÃO

A política do espectáculo tem alimentado o surgimento de salvadores que afastam as ideias e os ideais pela mera demagogia.  Actualmente, o descrédito no sistema democrático tem abalado a confiança nas nossas instituições e nas pessoas que nos representam, dando lugar ao surgimento de discursos meramente sensacionalistas e que em nada contribuem para a verdadeira discussão política.

Quando o ser humano se encontra malogrado e acredita que não existem soluções, começa a acreditar em salvadores. Salvadores esses que, aproveitando-se das fragilidades do seu público-alvo, procuram aniquilar qualquer espírito crítico que possa vigorar dentro de cada pessoa. O medo, a criação de um inimigo comum e a apresentação de verdades absolutas para problemas demasiado complexos serão sempre as principais armas do político populista e dito anti-sistema.

No domínio dos assuntos humanos, tal como afirmou Hannah Arendt, “a pretensão a uma verdade absoluta, cuja validade não necessita de apoio por parte da opinião, abala os fundamentos de qualquer regime”. O problema coloca-se, sobretudo, quando essas verdades absolutas levam à tentativa de aniquilar os direitos fundamentais de cada indivíduo e outrora considerados um dado adquirido.

Pensemos no exemplo mais recente dos Estados Unidos, onde centenas de apoiantes de Donald Trump atacaram o Capitólio em nome da “verdadeira democracia”. O (ainda) presidente nunca aceitou a sua derrota eleitoral, dedicando os últimos meses da sua presidência a proferir palavras de ódio contra as instituições e instigando os seus apoiantes à revolta. A “verdade absoluta” de que as eleições foram fraudulentas é apenas um exemplo de uma manipulação das massas que cega os seus seguidores. Todavia, esta linha de pensamento está a ser adoptada em Portugal. Recentemente, o candidato André Ventura afirmou que “quer os votos bem contados”. Esta táctica não é nova e tem apenas um objectivo: preparar terreno para colocar em causa o acto eleitoral, à semelhança do que fez Trump.

Desde a fundação do seu partido, o líder do Chega tem adoptado o mesmo estilo de retórica de Donald Trump ou Le Pen, procurando criar a imagem de Deus da democracia. A sua forma de actuação política dá (aparentemente) resposta a todos os que não acreditam no actual sistema e que há muito anseiam a chegada do messias. Este descontentamento abre portas para as verdades absolutas que não necessitam de contraditório e muito menos de fundamentação. Seja através da necessidade de se criar a IV República (criticando constantemente um sistema do qual sempre fez parte), da defesa de um sistema penal arcaico e típico da Idade Média (ignorando toda evolução operada desde Cesare Beccaria) ou através da discriminação com base no género, raça ou orientação sexual.

Os princípios jurídicos fundamentais nunca serão propriedade de nenhum quadrante político e a partir do momento em que se colocam em causa os alicerces dos direitos inerentes à própria condição humana o nosso sistema democrático é colocado em causa.

A pretensão das verdades absolutas combate-se com o contraditório e a apresentação de factos e não com falácias ad hominem, como até agora tem acontecido e que potenciam a a vitimização do político populista. Os nossos representantes fracassam no momento de passar a mensagem, falando para eles próprios e não para os cidadãos. Os salvadores, aproveitando-se dessa fragilidade, conseguem captar as massas e apresentar soluções fáceis para problemas demasiado complexos. Urge, por isso, a adopção de uma comunicação que consiga contrariar a pretensão das verdades absolutas. Afinal, o debate de ideias será sempre a maior arma de todos os que acreditam num sistema livre, pois só isso consegue assegurar a vitalidade da democracia.

Faço parte de uma geração que não viveu o 25 de Abril, o 25 de Novembro e que não assistiu à aprovação da Constituição de 1976. A minha geração, que só através dos documentários e dos livros estudou esses marcos da nossa história, é a mesma que sabe e valoriza viver em liberdade e num sistema respeitador dos princípios fundamentais de cada cidadão. 

Os desafios do futuro são enormes. O nosso sistema político, por muitos mais defeitos que se possam apontar, constrói-se todos os dias e pressupõe que cada cidadão contribua para o seu fortalecimento. A todos os democratas, independentemente da sua ideologia, cabe demonstrar que a pretensão da verdade absoluta é, na verdade, uma tentativa oca de mascarar a arte de fazer política. 

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