E se o Parlamento não fosse em ‘futebóis’?

É importante que amanhã o Parlamento dê um sinal forte e aprove a proposta que visa impedir os deputados de integrarem órgãos sociais de clubes de futebol da 1.ª Liga, da LPFP e da FPF. Trata-se de aplicar a si próprio os limites que impôs (e bem) aos magistrados judiciais e do Ministério Público.

A promiscuidade entre o futebol e a política não é um problema novo, mas tem havido pouca vontade de procurar soluções. Nos últimos anos, vários têm sido os casos de deputados que exercem o seu mandato ao mesmo tempo que, no âmbito do futebol profissional, ocupam cargos em órgãos de clubes, da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (LPFP) e da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).

Nos anos de 1990, o Parlamento chegou mesmo a ter um deputado que, num conflito de interesses em toda a linha, fez o pleno de presidir à comissão parlamentar com competência na área do desporto ao mesmo tempo que ocupava altos cargos na FPF. Já na primeira década do século XXI, existiu um outro que, sendo membro dessa comissão parlamentar, foi também presidente da LPFP.

Hoje, embora sem cargos tão sonantes e sem referir a integração de comissões de honra de candidaturas, continuamos a ter, pelo menos, dois deputados que ocupam cargos em órgãos sociais de clubes da 1.ª Liga, outro que ocupa um cargo no conselho de administração de uma SAD e uma deputada que ocupa um cargo na FPF. Continuam ainda a existir, por vezes, até no próprio Parlamento, os famosos jantares anuais que reúnem deputados com os presidentes dos clubes dos três grandes.

Esta promiscuidade é particularmente grave e preocupante quando é sabido que Portugal é o segundo país do mundo onde maior número de desportistas considera esta modalidade como a mais corrupta dos desportos (só sendo superado pela Argentina) e onde 24% dos cidadãos considerou este desporto como o principal foco da corrupção do país. A própria Europol identificou mesmo a corrupção no desporto como uma das 12 principais actividades criminosas organizadas na União Europeia.

Estes perigos associados ao mundo de futebol (e às suas ligações perigosas e pouco transparentes) têm levado à implementação de cordões sanitários em diversos sectores, que procuram limitar a influência do futebol, mas que tardam a chegar ao domínio parlamentar. No plano da justiça, em 2019, o Parlamento, acolhendo uma reivindicação antiga da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, limitou grandemente a hipótese dos magistrados judiciais e do Ministério Público integrarem órgãos sociais de clubes de futebol. No ano passado, duas televisões decidiram pôr fim a programas de comentário desportivo com a participação de adeptos dos clubes, invocando o ambiente de toxicidade e o clima de guerrilha.

Não é admissível que, perante tudo isto, continuem a não existir limitações a estas práticas que abrem a porta a que o amor ao clube se possa sobrepor ao compromisso para com o interesse público, que deveria ser sempre a bússola no exercício do cargo de deputado. Não é admissível que, enquanto penhoram (ainda mais) a imagem externa e a credibilidade do Parlamento perante a sociedade civil, os deputados continuem a ter este tipo de ligações institucionais que dão ao mundo do futebol um certificado da probidade que há muito foi perdida.

Perante a incapacidade da Comissão da Transparência para fazer valer o bom senso e a insuficiência das regras de domínio ético, é importante que amanhã o Parlamento dê um sinal forte de que não quer continuar a ir em 'futebóis' e que quer aprofundar o exercício da transparência, aprovando a proposta que pretende, a partir da próxima legislatura, impedir os deputados de integrarem órgãos sociais de clubes de futebol da 1.ª Liga, da LPFP e da FPF. Trata-se, pois, de aplicar a si próprio os limites que impôs (e bem) aos magistrados judiciais e do Ministério Público.

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