Europa e EUA: uma parceria em ruptura e a precisar de reparação

O impacto de Trump nas relações transatlânticas significa que, em qualquer potencial conflito dos EUA com a China ou a Rússia, a neutralidade é agora a opção mais popular entre os europeus.

Donald Trump não é nenhuma Evita Perón. Poucas pessoas na Europa ficarão tristes com a sua partida. Ao mesmo tempo que festejam a transição para uma força moderada, em Joe Biden, a maioria dos europeus duvida que os Estados Unidos possam regressar à liderança global em questões internacionais, como as alterações climáticas ou a ameaça da China.

Este é o ponto-chave da nossa sondagem, publicada esta semana, feita a mais de 15 mil europeus em 11 Estados-membros da UE. Além de revelar um grande cepticismo relativamente à trajectória futura dos EUA, chega à conclusão que, embora muitas pessoas na Europa estejam solidárias com o novo líder da Casa Branca, uma maioria pensa agora que o sistema político dos EUA está em ruptura.

Os EUA, aos olhos de muitos europeus, serão distraídos por divisões internas e lutarão para reconquistar a liderança global. Seis em cada dez inquiridos na sondagem do ECFR pensam que a China irá ultrapassar os EUA e tornar-se a principal superpotência mundial nos próximos dez anos. E há uma maioria a pensar que, afinal de contas, os EUA não estarão sempre prontos a proteger a Europa. A aposta de Trump de que era do interesse de Washington agir como o grande perturbador, e de organizar o mundo em torno de relações bilaterais assimétricas com outras potências, parece ter falhado. No entanto, a esperança de que Biden se torne um pivot dos EUA, de volta à política de Obama de incorporar o poder norte-americano numa rede de alianças, também parece irrealista.

Quase um terço dos europeus acredita que, depois de terem votado no Trump em 2016, não se pode confiar nos norte-americanos. Surpreendentemente, mais de metade dos alemães (53%) têm esta opinião sobre o parceiro transatlântico da Europa. Embora possam ser atípicos neste ponto, é evidente que a reputação internacional prejudicada dos EUA pode levar mais tempo do que um único ciclo eleitoral a sarar.

O impacto de Trump nas relações transatlânticas significa que, em qualquer potencial conflito dos EUA com a China ou a Rússia, a neutralidade é agora a opção mais popular entre os europeus. A nova administração dos EUA pode ter presumido que a mudança dos europeus para a neutralidade se deu, unicamente, com a sua reacção visceral a Trump. Ao que parece agora, pode não ser o caso.

Como alternativa à dependência que têm dos EUA, os europeus estão a convergir em torno da ideia de uma Europa mais soberana e autónoma. Mais de dois terços dos europeus em geral acreditam que este continente deve cuidar da sua própria segurança, com especial entusiasmo entre os cidadãos franceses (70%), suecos (71%) e espanhóis (71%) – e até mesmo britânicos (74%).

Isto levanta a questão de saber se Berlim irá substituir Washington como a capital “prevalente”, para a liderança da política externa. Certamente, parece que muitos europeus têm esta opinião – com a maioria dos inquiridos em França, Espanha, Dinamarca, Países Baixos, Portugal e Hungria a escolherem a Alemanha, acima dos EUA, como o “país mais importante com o qual se deve construir uma boa relação”. O Reino Unido (55%) e a Polónia (45%), que tradicionalmente vêem os EUA como poderosos protectores da sua liberdade, foram os únicos países que classificaram os EUA à frente da Alemanha de um modo significativo.

Dito isto, parece fácil uma leitura excessiva destes dados. Embora alguns líderes europeus, como Emmanuel Macron, tendam a interpretar o apoio popular à soberania europeia como um desejo de desempenhar um papel mais importante na política global, representam, para uma maioria substancial dos cidadãos, um desejo de neutralidade na escalada da concorrência entre os EUA e a China. Para estes cidadãos, a soberania não é uma grande entrada, por parte da UE, na política internacional, mas, pelo contrário, uma porta de saída de emergência do mundo bipolar de amanhã. É uma candidatura à reforma antecipada da competição das Grandes Potências.

A principal conclusão destes dados, no momento em Biden toma posse como o 46.º Presidente dos Estados Unidos, é que os europeus não tomarão automaticamente o partido de Washington numa nova Guerra Fria. Não é que discordem necessariamente da agenda dos EUA – o problema é que têm dúvidas sobre a sua capacidade de vencer. E o seu apoio terá de ser conquistado com provas sobre benefícios mútuos, em vez de ser encarado como um dado adquirido.

Após quatro anos de Trump, a parceria existente entre a UE e os EUA está em ruptura e a precisar de reparação. Em anos complicados, como testemunha o desempenho da bolsa de valores norte-americana, são os sentimentos e não as realidades económicas e políticas que governam o mundo. Deste modo, a nova administração Biden tem todos os motivos para temer não só as divisões tóxicas internas, mas também o estado de espírito dos europeus, à medida que os Estados Unidos voltam a entrar no mundo.

Ivan Krastev é presidente do Centro de Estratégias Liberais em Sófia e investigador permanente do Instituto de Ciências Humanas IWM em Viena
Mark Leonard é diretor do grupo de reflexão pan-europeu do Conselho Europeu de Relações Exteriores (ECFR)

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