O privilégio de poder fazer uma birra

Sabes, Ana, há decididamente um momento de viragem na percepção da gravidade desta doença, o momento em que atinge de forma muito grave alguém que nos é próximo. Aí tudo muda, e deixamos cair a barreira de negação que construímos até contra o mais explícito dos gráficos.

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@designer.sandraf

Querida Ana,

A casa já está demasiado silenciosa e demasiado arrumada há muitos dias, parece uma eternidade desde que os netos cá estiveram. Mas só passaram ainda cinco dias, menos cinco dos que faltam para estarmos de novo todos juntos, espero eu.

É estranho, mas no primeiro confinamento reagi em contracorrente, jurando que a covid não me transformaria numa boa dona de casa. Resisti a abrir armários e a pôr a dispensa em ordem, como se fosse uma forma de mostrar que o vírus não mandava em mim. Mas, desta vez, senti o impulso contrário. Afiei os lápis, arrumei a papelada acumulada na minha secretária e fiz o mesmo ao ecrã do computador. Pus os livros arrumadinhos na estante, e senti a necessidade de estabelecer um horário de trabalho e uma lista de tarefas, como se a única maneira de suportar este “intervalo” na vida, fosse apresentando resultados e atingindo metas.

Sabes, Ana, há decididamente um momento de viragem na percepção da gravidade desta doença, o momento em que atinge de forma muito grave alguém que nos é próximo. Aí tudo muda, e deixamos cair a barreira de negação que construímos até contra o mais explícito dos gráficos.

Quando nos toca a nós, percebemos o verdadeiro drama que é esta nova realidade das famílias separadas dos seus doentes que, uma vez ligados a ventiladores, deixam de poder usar o telemóvel para dar notícias. Como que desaparecem, tal e qual os filmes de terror. Sei que as equipas que salvam vidas estão concentradas em salvar vidas, e estamos-lhes todos infinitamente gratos, mas as horas, os minutos e os segundos de quem — do lado de cá — espera uma migalha de informação é difícil de descrever. Não estamos em tempos de apontar o dedo a quem gere esta comunicação (ou a falta dela), mas acredito que não tem de ser assim. Que merecia uma Birra a sério. E porque é que as pessoas não a fazem? Talvez pela mesma razão que muita gente, mesmo crianças, não se pode dar ao luxo de fazer birras: por medo das consequências.

Nunca falámos de quem não pode fazer birras. Ana, fala-me tu, enquanto espero.


Querida Mãe,

Ui, em que ferida foi a mãe tocar: a falta de liberdade para fazermos birras nos hospitais ou com os hospitais. Mesmo em situações bem menos extremas do que aquela que vivemos agora, como por exemplo num parto, sabemos o quão vulneráveis nos sentimos e como é difícil fazer uma birra (mesmo que com boas maneiras!), por medo das consequências. E, pensando bem, este é mesmo um dos pontos fulcrais quando pensamos em como nos queremos relacionar com os nossos filhos.

Mãe, repare, é verdade que dá jeito não haver birras. Dá jeito aos profissionais de saúde, aos professores, e dá jeito aos pais. E é tão fácil as “figuras de autoridade” usarem aquela lógica de que sabem o que é melhor para nós, para os doentes, os alunos, os filhos. Acreditarem que um hospital, uma escola, uma casa — ou uma sociedade! — funciona tanto mais eficientemente quanto menos as pessoas questionarem e pedirem explicações.

Mas há uma “arma” ainda mais poderosa de garantir a obediência: o medo. Mesmo que seja o medo emocional de desiludir ou de perder o amor das pessoas que amamos ou de quem dependemos. O problema é o custo que acarreta. O problema é os doentes ficarem apavorados numa cama de hospital, com medo de carregar no botão e receber um raspanete. Ou como me contou uma senhora, agora num lar, de lhe dizerem que as suas queixas são “manha”. O problema é um médico acreditar de tal forma no que tem traçado, que não lhe passa pela cabeça equacionar a realidade do paciente que tem à frente e que, provavelmente, tem outras prioridades e outras preocupações. O problema é uma criança estar nas aulas quieta e sossegada, “exemplar”, mas chorar todas as noites porque não quer ir à escola. O problema é termos um filho que nunca levanta a voz, mas que não consegue calar a voz que tem dentro de si e que lhe garante que é melhor destruir-se a si mesmo do que irritar alguém.

Decididamente temos de ajudar as crianças (e os adultos) a perceber que há birras justas e birras que até podem saber bem, mas não levam a lado nenhum. E, para que cheguem aí, é preciso que lhes demos o exemplo, no trânsito, nas reuniões (que agora, em teletrabalho escutam em directo), nos telefonemas, e na forma como somos pais. Será uma grande vitória se lhes conseguirmos mostrar uma forma de transmitir preocupações e desagrados, sem destruir, humilhar, gritar ou desvalorizar quem está do outro lado. Por exemplo, escrevendo cartas.

Beijinhos mãe, e que a sua espera seja recompensada por boas notícias.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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