A escolha da superficialidade

Muito tem sido dito sobre e muito lutamos nós, professores, contra a falta de hábitos de leitura, mas se submetemos os nossos estudantes a testes e exames de escolha múltipla, infelizmente advogados pelo Ministério da Educação, estamos a alimentar esse afastamento.

Revi, recentemente, o documentário de Michael Moore sobre o sistema educacional da Finlândia, um dos que atingem maior nível de sucesso escolar em todo o mundo.

O conceito finlandês de um ensino efectivo, motivante e verdadeiramente enriquecedor assenta em várias medidas de carácter pedagógico como uma carga horária menor, turmas mais pequenas, redução significativa de trabalhos de casa, exames menos frequentes.

Dir-me-ão que estas alterações exigem mudanças estruturais extremamente difíceis de implementar num país e numa cultura como os nossos. Isso levaria a uma longa discussão e exigiria uma análise de natureza diferente daquela que me proponho fazer neste momento. Não vou, portanto, por aí. Prefiro focar-me nas alterações de carácter didáctico introduzidas no sistema de ensino daquele país e facilmente exequíveis no nosso.

De entre essas alterações, aquela que quero hoje comentar é a abolição na Finlândia de exercícios de Escolha Múltipla em quaisquer momentos de avaliação. Infelizmente,  tal não aconteceu entre nós: este tipo de provas é advogado pelas tutelas em todos os níveis de ensino com enorme prejuízo dos estudantes.

Quando Michael Moore perguntava, perplexo, a um grupo de alunos finlandeses do ensino secundário como é que eles respondiam às perguntas sem a escolha múltipla, um deles disse a sorrir: “Sabendo a resposta.” Os outros estudantes concordaram sorrindo também, perante a estupefacção do entrevistador.

Não nos podemos esquecer de que este famoso realizador é americano, país onde a Escolha Múltipla é uma instituição, onde testes desta natureza têm o poder de decidir o destino de cada um. E o que é triste é que esta tipologia de exercícios, supostamente para testagem de conhecimentos, já está a adquirir entre nós o mesmo estatuto.

Gostei particularmente da resposta do aluno finlandês, claramente denunciadora da pobreza, ineficácia e superficialidade desta metodologia tão massivamente utilizada. Algumas provas desta natureza são muito simplesmente uma maratona, uma esgotante corrida contra o tempo.

É criada uma situação artificial: não é assim que raciocinamos em momentos reais. 

Sempre me insurgi contra esta tipologia de exercícios por os considerar limitativos, não permitindo aos alunos uma real demonstração das suas capacidades ou a verificação da ausência das mesmas pelo professor. É, aliás, uma estratégia extremamente injusta já que nivela estudantes com níveis de conhecimentos completamente diferentes, premiando a superficialidade em detrimento do saber profundo.

Mas como surgiu esta forma de testagem?

O psicólogo Robert Yerks, seu criador, vendeu, no início da década de 1920, a sua ideia revolucionária ao exército americano supostamente para testar massivamente o QI dos recrutas. Chegou-se, no entanto, à conclusão de que os resultados não eram, de modo nenhum, fiáveis.

No entanto, Yerks insistiu e conseguiu vender a ideia ao Ministério da Educação, onde foi aceite sem que a sua validade voltasse a ser questionada. Tornou-se a forma de testagem padrão nos Estados Unidos em 1926 e não houve retorno. Na década de 30 era já um dado adquirido nas escolas americanas, juntamente com as suas derivações, os exercícios de verdadeiro/falso. Penso que não terá sido alheio a esta adopção o facto de tais testes serem de correcção rápida, exequível até por uma máquina...

Já ouvi este argumento como se de uma enorme vantagem se tratasse.

Felizmente, a escolha múltipla chegaria bastante mais tarde ao sistema de ensino português. A minha geração não foi massacrada com esta forma de testagem, tendo sido sempre permitido aos alunos mostrar os seus conhecimentos sem factores perturbadores ou jogos de azar. E, sim, havia que saber a resposta.

É do conhecimento geral que não são válidas as respostas a perguntas abertas com um mero “Sim” ou “Não” sem que seja apresentada uma justificação para a opção feita. Nos exercícios de escolha múltipla é exactamente o oposto que se está a pedir: uma mera escolha de entre três ou mais hipóteses sem que seja explicitada uma razão que a justifique, um raciocínio que a ela conduza. O aluno deverá demonstrar que obedeceu a um pensamento claro, com conhecimento do assunto em estudo, não a uma mera exclusão de partes ou a premissas erradas que acabaram por redundar na conclusão certa devido a uma linha de raciocínio incorrecta.

Mas não se esgotam aqui os motivos pelos quais esta tipologia de exercícios, infelizmente tão generalizada, se traduz numa apologia do conhecimento superficial, acabando por nivelar estudantes com graus de sabedoria claramente distintos e frustrar muitos que, sabendo a resposta, se sentiram confundidos pela oferta de opções.

Uma outra razão prende-se com a elaboração destes exercícios, com o facto de haver, por vezes, mais do que uma escolha possível, sendo que unicamente uma é apresentada pelo professor como aceitável. O aluno não pode apresentar o seu raciocínio e até provar que a sua opção tem lógica. Qualquer docente de mente aberta poderá concordar com uma solução diferente da sua, desde que devidamente fundamentada.

Um teste de escolha múltipla exige a omissão de uma linha de pensamento, quando os estudantes devem ser ensinados a pensar e a expor as suas ideias, não a limitá-las.

É evidente que este tipo de ferramenta, que se quer de avaliação, não permite, de modo nenhum, evidenciar características como a criatividade, a sensibilidade, o espírito crítico, todas as particularidades que nos caracterizam e diferenciam.

É relevante sublinhar que os testes de escolha múltipla vão gerar metodologias de ensino e estudo direccionadas para esta forma de avaliação, o que constituirá, sem dúvida, uma das causas das dificuldades de expressão, pobreza vocabular, desvios à norma gramatical tão incrivelmente comuns nos nossos jovens. Exige-se cada vez menos aos estudantes uma articulação clara e criativa das suas ideias. É meramente espectável que escolham a palavra/palavras certas de entre aquelas que são previamente fornecidas.

Lamentavelmente, estão, no discurso de muitos, em vias de desaparecimento, quando não completamente ausentes, tempos verbais essenciais a uma correcta construção frásica e expressão de uma sequência temporal. O modo conjuntivo é cada vez menos utilizado, sendo comum ouvir a meio de uma frase “embora dizemos”, “ainda que fazemos”. Também os tempos compostos deram lugar, em qualquer situação, a tempos simples: a forma “tinha feito” foi abolida e substituída por “fiz”, com o devido prejuízo da relação de tempo entre os factos. Os particípios passados e verbos com particípio passado duplo representam actualmente enorme dificuldade. Para além da deficiente utilização das formas verbais, também os advérbios de modo passaram a ser confundidos com adjectivos. E muitas outras ofensas de lesa língua são hoje comuns, empobrecendo o discurso e privando-o de clareza e expressividade.

Muito tem sido dito sobre e muito lutamos nós, professores, contra a falta de hábitos de leitura, mas se submetemos os nossos estudantes a testes e exames de escolha múltipla, infelizmente advogados pelo Ministério da Educação, estamos a alimentar esse afastamento de boa literatura, que só os podia enriquecer e ajudar a exprimir adequadamente não só raciocínios factuais mas também sentimentos e emoções, que fazem tão somente parte da vida e estão presentes em todas as áreas do saber.

Já bastavam as redes sociais e tudo o que lhes é inerente para constantemente os limitarem.

Os momentos de avaliação orais ou escritos deverão ser, em última análise, momentos de comunicação entre o professor e o aluno, um espaço de expansão de ideias, de análise crítica e sempre de emoções. Este espírito não poderia estar mais longe de ter lugar num teste de perguntas de escolha múltipla e das suas descendentes verdadeiro/falso.

Tal metodologia cria, repito, situações artificiais, redutoras, nada fiáveis e claramente injustas.

A educação finlandesa já se libertou desta limitação. Aguardamos uma tomada de consciência do sistema educacional português.

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