O populismo ameaça a democracia? E a falta de educação?

O verdadeiro inimigo da democracia é falta de educação. Falta de educação para a cidadania, falta de educação sobre o ser humano e a sua posição no mundo, falta de educação sobre como se chegou ao sistema político vigente e como é que ele funciona.

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Estava na casa de uma amiga quando assisti ao debate dos candidatos presidenciais Ana Gomes e André Ventura. Apesar de, nesta altura do “campeonato”, já não haver razão para espanto no que toca a Ventura, confesso que fiquei alarmada. “Tens de ver o debate dele com a Marisa! Ela foi arrasada”, disseram-me.  

André Ventura tem um discurso simples que chega a toda a gente, todos o compreendem, o seu vocabulário é básico e o tom destabilizante. Ainda na onda da simplicidade, este candidato faz a oposição entre “bons” e “maus”, entre “trabalhadores” e “preguiçosos”, entre “pessoas de bem” e “bandidagem”. Estas oposições são especialmente sedutoras para quem prefere não pensar. Além disso, criar um culpado é como criar uma válvula de escape para a frustração. Frustração essa que é factual, nomeadamente quando se passam dificuldades e os agentes políticos surgem distantes e inalcançáveis – os níveis de abstenção espelham isso. 

André Ventura é o candidato que “ao menos diz a verdade sem rodeios”. O problema é: que verdade? Representante da extrema-direita portuguesa, quais serão as suas verdades? Este candidato não maça o público discutindo ideias porque, suponho eu, essa discussão não passa de uma divagação sem utilidade – assim como o é também a disciplina de Filosofia, para alguns. Este candidato é “pão pão queijo queijo” e é disso que “nós precisamos”. 

Políticos como André Ventura, Marine Le Pen, Donald Trump e Jair Bolsonaro são acusados de populismo. Mas que chavão é esse o do populismo?  Como escreveu Peter C Baker, no artigo "We the people’: the battle to define populism”, publicado em 2019 no​ The Guardian, “(...) populism sounds like something from an horror movie: an alien bacteria that has slipped through democracy’s defences”.​

É o populismo que está a abanar a democracia? Não creio. Pelo que tenho constatado, o populismo é um estilo discursivo que poderia ser usado por qualquer político.  

“I will give voice to the people. Because in democracy only the people can be right, and none can be right against them.”​ Estas palavras de ordem, embora possam gerar controvérsia depois de dissecadas, poderiam ser usadas em campanhas políticas de qualquer cor partidária. Quem é que não conhece a música que nos diz que “o povo é quem mais ordena”? Pois bem, foi Le Pen que proferiu o que transcrevi em inglês no parágrafo acima, fê-lo em 2007. Discursos unificadores há muitos, nomeadamente quando é necessária uma mudança. Resta saber: A quem é que ela se está a referir exactamente quando diz “the people”? Quem é que Le Pen deixa para trás? Estas são questões cruciais. 

Parece-me que as forças políticas instaladas adquiriram o hábito de usar um discurso mais cuidado porque, noutros tempos, o estilo brejeiro de Ventura seria alvo de desacreditação – hoje já não é assim. Hoje não há filtros para o que se pode ver na televisão ou na Internet, é indiferente se no jornal da noite passam cadáveres humanos num contexto de massacre bélico. Diria que há uma espécie de dormência e que, por isso, os estímulos mais fortes, o espectáculo mediático do inesperado, independentemente do seu conteúdo, sacia (ainda que por pouco tempo) a sede de se quebrar o status quo. Um partido emergente de extrema-direita, como é o caso do Chega, não obedece às regras discursivas instaladas, o objectivo é criar sensação, “partir a loiça toda” para ganhar votos. Pergunto-me como é que a forma se sobrepõe assim ao conteúdo, convencendo mais e mais pessoas.  

O teórico político Benjamín Arditi descreve o populista como o convidado bêbado que, no jantar da democracia, desrespeita todas as regras de boa educação, trazendo para cima da mesa as falhas e hipocrisias do sistema. Porém, isso não o qualifica para governante.   

Parece-me que quem fala de populismo não vota em líderes populistas. Mas, como vimos no caso do Brasil e dos Estados Unidos da América, a democracia não representa uma elite intelectual, representa a maioria – e é assim que deve ser. E daqui quero partir para a conclusão deste artigo: Não, não é o populismo que ameaça a democracia. O que ameaça a democracia, o seu verdadeiro inimigo, é a falta de educação. Falta de educação para a cidadania, falta de educação sobre o ser humano e a sua posição no mundo, falta de educação sobre como se chegou ao sistema político vigente e como é que ele funciona. Os políticos anteriores falharam por não terem investido na educação, isto é, numa educação forte e pluralista que sustente a democracia, que permita identificar discursos demagógicos. Agora, esses mesmos políticos têm de aprender a lidar com desaforos que ganham votos e, pior do que isso, que ganham eleições.  

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