Dançar em pontas como acto político

Perante a ameaça de totalitarismos, é preciso preservar a democracia, mas é também necessário fazer surgir uma nova imaginação política, como aquela que uma trintena de mulheres expôs esta semana no teatro D. Maria II.

O momento político mais importante a que me foi dado assistir nos últimos tempos não aconteceu em nenhum debate televisivo. Foi no palco do Teatro D. Maria II, em Lisboa, na terça-feira, dia em que estreou Carta, o novo trabalho de Mónica Calle, na companhia de uma trintena de mulheres, actrizes e músicas, movimentando-se no palco e tocando fragmentos do Segundo Andamento da 7.ª Sinfonia de Beethoven. Foi ali, e não na TV, que se imaginou um outro futuro, feito de prazer, sensibilidade e solidariedade.

Ali percebeu-se que a política pode religar-nos com o mundo e com as muitas possibilidades que nele existem, recusando a ideia de que os seres humanos só são capazes de existir subordinando outros seres humanos, ou animais, o ambiente, o planeta. Ali pressente-se uma imaginação política que é urgente reactivar, de tal forma vivemos letárgicos nos últimos tempos, achando que não estávamos assim tão mal, fixados no iPhone, Netflix ou voos baratos, incapazes de perceber problemas sistémicos, desatentos às desigualdades gritantes debaixo do nosso nariz, habitando o corpo em decomposição do neoliberalismo. E agora eis-nos reagindo tardiamente quando percebemos que existe quem pense que a solução para crise da democracia é acabar com ela e o regresso ao passado totalitário.

O problema, como se viu nos debates da TV, é que a imaginação política se esvaiu. Estamos em perda, preservando conquistas (direitos, liberdades, garantias), mas incapazes de perspectivar outros futuros. Desmascara-se a boçalidade ou a ausência de soluções de quem se disfarça de anti-sistema, atribuindo culpas da precariedade aos mais enfraquecidos, mas era preciso também assumir os impasses para os transcender e encetar outro rumo.

E é aí que Carta é uma lição, sem ter essa pretensão, como já era Ensaio Para Uma Cartografia, outro notável espectáculo, de 2017, do qual o novo é herdeiro. Numa primeira leitura era sobre o actor, o bailarino ou o músico, aquele que se propõe criar algo e que coloca a vontade de superação no aperfeiçoamento, ensaiando e repetindo os mesmos movimentos até à exaustão, num investimento emocional e físico tremendos, testemunhado por nós, espectadores, assombrados pela entrega de uma dúzia de corpos desnudados, dando-se em toda a sua vulnerabilidade, ao acto de em conjunto tocarem violino, de conceberem coreografias rigorosas ou de se exercitarem em pontas como no ballet, sem que antes alguma vez o tivessem feito. Parece uma impossibilidade.

Mas cada uma, à sua maneira, consegue-o. E fica-se a pensar. Como se faz? Como se toca violino quando jamais se pegou num instrumento? Será que qualquer um pode dançar em pontas? É possível mudar o mundo? Como se pode continuar a acreditar quando à frente tudo parece sombrio? Como continuar quando apetece desistir? Pelo exemplo daquelas mulheres, fazendo-o em colectivo, resistindo à circunscrição, não temendo a imperfeição, nunca prescindindo do rigor, exigência e desejo de superação.

Em Carta temos outra vez o colectivo, a ideia de que só existimos na ligação com os outros. Estão sempre juntos aqueles corpos, caminhando na mesma direcção em toda a sua nudez e fragilidade, embalados numa lógica de entreajuda. Rodeados pela pandemia é ainda mais emocionante o que vemos. Não desistem. É preciso continuar. Na sua crença na possibilidade do teatro afrontam o cinismo do mundo de hoje. Incendeiam-no. Não existe populismo que caiba naquele palco. Parte-se da experimentação colectiva, da criação de outros mundos possíveis, inimagináveis até ao momento em que se realizam. A imaginação política é isso. Não é idealização. É a potência que, em cada momento, concretiza modos de vida alternativos em comum. São laços que reconstituem o tecido humano de cooperação, capaz de superar a competitividade a que somos incentivados.

Aquela massa de corpos é inquebrantável. Sabemos que ninguém ficará para trás. Os mais desamparados não serão esquecidos. Os privilegiados serão mais atentos e frugais. O capital ou os totalitarismos podem querer dividi-los, mas eles cooperam. Podem querer enchê-los de ódio racista, sexista ou classista, mas criarão laços de fraternidade. Se forem sujeitos à precariedade, fomentarão circuitos autónomos de redistribuição da riqueza. Aquelas mulheres, em pontas, mostram que, para lá da tecnologia, de totalitarismos ou de pandemias, o corpo é um artefacto antigo, às vezes parecendo inválido, mas sem igual. Usemo-lo. Caminhemos juntos.

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