Presidenciais: incoerência do PS?

O PS, ao não recomendar o voto em nenhum candidato, enunciando antes critérios para uma escolha acertada, contribui para a reflexão do eleitorado. Não há, como disse Manuel Alegre, incoerência alguma.

“Isto é uma desvalorização da natureza do regime semipresidencialista de que o PS é um dos fundadores”, disse Manuel Alegre, o histórico socialista, à edição da última quarta-feira do PÚBLICO. “Não se pode desvalorizar assim o regime semipresidencialista. Os patronos deste regime, como Salgado Zenha, Mário Soares, Sottomayor Cardia e José Luís Nunes, só para falar de alguns dos que já não estão entre nós, não ficariam de certeza muito satisfeitos com isto”, reforçou. A opinião de Alegre é partilhada por muitos socialistas, estimando-se que um quarto dos militantes vote em Ana Gomes e outros candidatos de esquerda. Há, assim, uma clara divergência, que não se traduz em divisão por haver um clima de bonança próprio da previsão de um vencedor antecipado.

Mas terá Manuel Alegre razão? Deveria o PS apoiar Ana Gomes, militante socialista, ou, como recomendou a Juventude Socialista, qualquer um dos candidatos considerados de esquerda?

A resposta é um rotundo “Não!”.

Como salientou a deliberação da Comissão Nacional, de 7 de novembro passado, o PS “nunca apresentou um candidato próprio e sempre que apoiou um candidato, Ramalho Eanes, Mário Soares, Jorge Sampaio e Manuel Alegre, estes souberam colocar-se no plano próprio da candidatura presidencial, dirigindo-se ao conjunto dos portugueses para unir o país em torno dos grandes desígnios nacionais”.

As eleições presidenciais destinam-se a escolher o Presidente com as competências que a lei lhe confere. Por isso, as candidaturas presidenciais não devem ser emanação de partidos, como sucede manifestamente com as candidaturas de Marisa Matias (Bloco de Esquerda) e de João Ferreira (PCP), que se destinam apenas a marcar território, aproveitando os tempos de antena. Também é notório que a vontade individual de uma candidata, arvorada em campeã  na luta contra a corrupção, como é o caso de Ana Gomes, não é suficiente para fazer dela uma figura adequada ao desempenho de funções presidenciais.

Daí que o PS tenha optado, e bem, por não fornecer indicação de voto ao seu eleitorado, indicando antes os critérios mais relevantes quando se trata de eleições presidenciais, designadamente:

  • "Quem tem demonstrado, ao longo da sua vida política, adesão genuína e plena aos valores da Constituição, do Estado de Direito e da Democracia;
  • Quem está em melhores condições para cumprir e fazer cumprir a Constituição;
  • Quem valoriza a solidariedade e cooperação institucional entre Presidente e Governo, no respeito escrupuloso das competências dos diferentes órgãos de soberania;
  • Quem compreende o valor da estabilidade política em todas as circunstâncias, mas com especial acuidade em circunstâncias económicas e sociais difíceis como aquelas que atravessamos;
  • Quem melhor compreenderá para a defesa e aprofundamento de uma democracia inclusiva, baseada na dignidade humana;
  • Quem rejeita os radicalismos favorecendo o diálogo social e os consensos indispensáveis às políticas públicas de longo curso;
  • Em suma, quem melhor pretende unir as portuguesas e os portugueses, no escrupuloso respeito da Constituição.”

Não é preciso ser sagaz para apurar que a aplicação destes critérios conduz inequivocamente a um candidato: Marcelo Rebelo de Sousa. Este demonstrou, ao longo do seu mandato, empenho em cumprir e fazer cumprir a Constituição, cooperando de forma leal com o Governo e batendo-se pela estabilidade e dignidade da pessoa humana.

O seu profundo conhecimento das funções presidenciais, sendo ele, aliás, professor de Direito Constitucional com função destacada na equipa que elaborou a Constituição de 1976, permitiu-lhe não se imiscuir na ação governativa, sem prejuízo de revelar um poder interventivo e atento, como lhe compete.

Nas suas funções, dignificou Portugal. Contrariamente a Cavaco Silva, não hostilizou a esquerda, contribuindo para unir as portuguesas e os portugueses e gerando consensos necessários. Tive oportunidade de verificar o entusiasmo que a sua presença origina na diáspora, quando, em fevereiro de 2020, se deslocou a Goa.

Há quem diga, entre os socialistas: “Mas o homem é de direita! Vamos votar numa militante!” Ana Gomes tem muitas qualidades, bem demonstradas pelo notável desempenho como embaixadora na Indonésia, bem como no seu papel na denúncia da corrupção. O “Luanda Leaks” está indissociavelmente ligado à sua ação. Mas não chega.

Ana Gomes está muito longe, quer em termos de percurso político, quer intelectual, de Marcelo, o mesmo ocorrendo, aliás, com os restantes candidatos. Os debates presidenciais têm demonstrado a existência de um abismo, que não pode ser transporto com chavões e juras de resolução de problemas dos portugueses, como se estivéssemos a escolher o primeiro-ministro de Portugal.

Chega-se a perder o tino neste delírio governativo, como sucedeu no debate de 6 de janeiro, em que a embaixadora comparou agora António Costa a Viktor Orbán.

Há quem também diga, entre os militantes socialistas, que Marcelo terá uma atuação diferente num segundo mandato, tirando o tapete a Costa. Tal não seria original, pois os anteriores Presidentes da República tiveram, no geral, tal procedimento. Trata-se, pois, de um risco, que poderá ser reduzido se o PS mantiver a boa governação.

Em conclusão: o PS, ao não recomendar o voto em nenhum candidato, enunciando antes critérios para uma escolha acertada, contribui para a reflexão do eleitorado, contribui para uma escolha acertada, que apenas pode ser uma. Não há, pois, incoerência alguma…

Militante do PS

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico​

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