A culpa é deles

Temos idade para ter juízo. Deveríamos ter capacidade de assumir as nossas responsabilidades, agindo pelo bem comum. Quando esse momento chegar, se chegar, talvez Portugal comece a ser um país melhor.

Têm sido de revelação os últimos dez meses. Muitos esperavam da pandemia um tempo oportuno que nos tornasse melhores seres humanos e portugueses. Não foi, no entanto, isso que sucedeu até agora. Não há, infelizmente, evidências de que tal venha a suceder. Antes pelo contrário. Se estivermos atentos, perceberemos que a crise actual tornou bem mais saliente o ponto a que chegámos enquanto cidadãos e enquanto comunidade nacional. Os sintomas acentuaram-se no confronto com uma doença que teve o dom de nos apertar como furúnculos, tornando mais evidente o pus que temos dentro de nós – e devemos expulsar.

Passeamos pelas redes sociais, estamos atentos à televisão, ouvimos os programas de discussão aberta na rádio, lemos os jornais, escutamos as conversas nos cafés e noutros locais públicos, conversamos com os vizinhos e conhecidos, telefonamos aos amigos e familiares, dialogamos connosco – e chegamos sempre à mesma conclusão: a culpa de tudo quanto sucede e sucedeu foi, é e será sempre dos outros. Nunca nossa. Longe vão os tempos em que a culpa era uma moça feia que morria solteirona e encruada. Agora tem marido. Tem, aliás, uma incontável legião de maridos. Mas nunca nos vemos no grupo dos seus pretendentes ou esposos.

Entre as centenas de textos, longos ou curtos, bem redigidos ou num português vergonhoso, ilustrados ou destituídos de bonecada, a resposta ao que vamos vivendo no decurso da pandemia é sempre a mesma: “A culpa é tua.” A segunda parte da frase nunca é escrita ou dita, mas descobre-se facilmente: “A culpa é tua; nunca minha… A culpa é deles, nunca nossa…” Eles é que saíram de casa. Eles é que foram às compras. Eles é que foram ao café e ao restaurante. Eles é que se encontraram com amigos. Eles é que conviveram com familiares. Eles é que foram à praia. Eles é que viajaram. Eles é que festejaram o Natal ou o Ano Novo no meio de uma farra. Eles é que se esqueceram de desinfectar as mãos. Eles é que não puseram a máscara ou deixaram o nariz de fora. Eles é que se aproximaram demasiado dos outros. Eles é que foram à missa, ao cinema, ao teatro ou, crime supremo!, entraram numa livraria para adquirir livros. Eles é que andaram de bicicleta, aos magotes. Eles é que foram trabalhar. Eles é que batem o pé, querendo aulas presenciais. Eles é que teimaram ir ao médico quando poderiam ficar deitados. Eles e elas. Nós? Eu? Nunca. Nunca. Nem pensar nisso…

Se há pandemia, a culpa é deles. Nunca minha. Por isso, me ponho à janela e fotografo-os, enquanto andam na rua, pondo a sua imagem nas redes sociais, adornada com o competente insulto e, talvez, uma ameaça, velada (como convém). Por isso, publico “posts” em barda, mostrando-lhes o dedo do meio e outras formas evidentes e “educadas” de mostrar que a culpa é deles, só deles. Por isso, escrevo artigos nos jornais mostrando a sua irresponsabilidade, nunca a minha. Por isso, vou à televisão dizer o quanto têm mostrado falta de civismo e de obediência (eu tenho sido um “cidadão exemplar”!). Por isso, murmuro, resmungo, vocifero, insulto, ameaço e, sendo governante, proíbo e defino coimas e sanções. Para os outros. Para mim, não. Para mim, existem excepções, condições especiais, isenções, qualquer coisa que me livra das malhas que para os outros crio.

O que se verifica agora (exacerbado pela pandemia covídica e pelas suas graves consequências na saúde orgânica, psíquica e social) não é um fenómeno recente. Tem raízes na secular erosão das forças cívicas e espirituais que apelavam ao constante exame de consciência individual, à admissão da culpa e ao consequente propósito de emenda. Deixou de ser importante reconhecer o mal que fizemos ou fazemos. Entrou na nossa “cultura cívica” a repetida e nefasta prática de apontar o dedo aos outros (qual máscara escondendo o que somos e o modo como agimos). Num país em que todos os outros são responsáveis, ninguém é verdadeiramente responsável seja pelo que for. Numa lamacenta sociedade de passa-culpas, acabamos todos por viver impunemente, sejamos pequenos prevaricadores, traficantes de influências ou grandes corruptos. Assim se propagam, como espécies sujas e infestantes, a falta de exigência, o laxismo, o chico-espertismo, o lambe-botismo, o deixa-andar, a cunhagem como alavanca dos incompetentes, a corrupção ética, moral e social em todos os domínios do viver individual e colectivo.

Este problema não é, como disse, maleita contemporânea. É velha enfermidade que a pandemia teve o dom de pôr devidamente ao léu. Chega-me à memória um poema de Fernando Pessoa que, na voz de Álvaro de Campos, escreveu “em linha recta”. Também eu “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. // […] / Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, / Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado / Para fora da possibilidade do soco; / Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, / Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. // […] / Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; / Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! / […] // […] // Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra? // […]”. Nem todos temos culpa de tudo, é certo, mas todos nós somos culpados dalguma coisa, por actos ou por omissões (poderia enumerar exemplos, mas a memória dos leitores é suficiente). Se assim não fosse, não teríamos chegado aonde chegámos. O Estado somos nós. A sociedade somos nós.

Caramba, temos pelo menos 800 anos de história! Este nosso torpor individual e colectivo parece, no entanto, ser sintoma de infantilidade, do egocentrismo que caracteriza os primeiros anos do desenvolvimento das crianças. Mesmo que esse individualismo seja habilmente explorado por aqueles que desejam ludibriar-nos e explorar-nos, a culpa é nossa, porque fechamos os olhos e acusamos apenas os outros. Temos idade para ter juízo. Deveríamos ter capacidade de assumir as nossas responsabilidades, agindo pelo bem comum. Quando esse momento chegar, se chegar, talvez Portugal comece a ser um país melhor, em que deixaremos de ter medo de nos confrontarmos com a nossa fragilidade e dependência (como agora sucede). Até lá, temos muito que padecer. E vamos já padecendo…

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