Fechar as escolas: para memória futura

Não se pode, através do ecrã, com quebras na net, com ruído de fundo, com audição deficiente do que diz uma turma; não se pode, repito, falar em aprendizagem, nem em escola, nem em Universidade.

Os especialistas em saúde consideram que, até ao 12.º ano, as escolas não devem fechar. Consideram bem, ainda que coloquem a tónica na questão da movimentação dos alunos quando, terminado o dia de aulas, se deslocam para este ou para aquele destino. É este, a meu ver, um dos problemas da comunicação do Governo. O problema do contágio não reside na escola, nem tão-pouco nas aulas presenciais. Tomaram-se medidas para evitar contágios e, como todos admitem, as escolas, e em especial os professores, e restante pessoal auxiliar, souberam estar à altura do que lhes era pedido. Desde Março passado há medidas restritivas, corredores com orientação, nos pavilhões, para que todos saibam para onde devem ir, para que todos reconheçam que zonas das escolas podem ser frequentadas. Desinfectantes, uma miríade de utensílios para fazer face à pandemia, tudo se aplicou. Cumpriram-se as mais básicas regras emanadas da DGS.

O Governo, apostando na transição digital, reforçou o discurso das aulas online, promoveu a tele-escola. Já noutra ocasião me referi à paupérrima escola que, com esse modelo, teremos. Com este confinamento em algumas áreas de actividade – e agora que o fecho das escolas não se efectivou –, tenhamos em conta os malefícios que deste confinamento, e outros futuros, advêm, sobretudo no que à escola e Universidade importam. Caso os alunos, daqui a semanas, ou meses (nova estirpe, nova ameaça?), sejam convidados a ir para casa, sacrificando as aprendizagens, que resultados práticos podemos alcançar? Que reflexão fazer? Teve-se o bom senso de evitar o fecho dos estabelecimentos de ensino. Vejamos o que o futuro guarda. Mas sirva este artigo para pensarmos sobre o que muitos consideram nefasto: o ensino digital, verdadeiro logro, a meu ver.

Primeiro que tudo, no que respeita à consolidação dos saberes e cumprimento integral dos programas, o modelo online compromete, em grande medida, esses dois fins. Os alunos, em aulas online, e a que nem todos terão acesso por razões socioeconómicas, não podem ter a mesma atenção que em aulas presenciais. Jacques Rancière considera ser a aula o último reduto da atenção: os mais novos, em época de trivialização do digital, já pouco ouvem, já pouco lêem, já pouco ou nada conseguem absorver em aulas presenciais – com as aulas digitais apenas se artificializa o processo ensino-aprendizagem e acentuam-se diversas iliteracias. Compromete-se grandemente as competências do saber ouvir, saber ler, saber escrever e saber falar. Isto no caso do Português, cujas competências a desenvolver – estas quatro – são transversais a todas as outras disciplinas. Um aluno, em casa, pode ele ter a mesma atenção olhando para um ecrã? Há a mesma disponibilidade para a relação pedagógica com o docente? Não se perde, com o paradigma online (se veio para ficar, que aulas no futuro teremos, Deus meu?!), a densidade que a leitura dos textos acarreta, a lentidão que o saber a sério exige? Com o online tudo passará a ser dado da forma mais incipiente e rápida. Não se pode, através do ecrã, com quebras na net, com ruído de fundo, com audição deficiente do que diz uma turma; não se pode, repito, falar em aprendizagem, nem em escola, nem em Universidade.

O que temos com o ensino online é uma completa falsificação da educação, seja em que área for. Em cursos de arquitectura, como mostrar, como ensinar a construção deste ou daquele projecto se os alunos não tocam, não experimentam os exercícios de maquetagem? Numa aula de Português, ou de História, como analisar a par e passo um poema, um excerto dum romance, um trecho duma peça de teatro, se o aluno, metido em casa, distraído com mil-e-um artefactos tecnológicos (o iPhone, o tablet, ligados enquanto a aula online decorre), não ouve, na íntegra, o que o professor comenta? Como ensinar a ler e a escrever se se perde o ver como se faz? Os quadros, onde as matérias se comentam, se registam, se expõem, são ainda fundamentais para que os alunos compreendam os passos da leitura metódica. Se um poema lhes aparece já comentado, com os apontamentos já escritos na margem do texto, como pode um aluno perceber o “como” que levou àqueles comentários do professor? Numa disciplina como Matemática, é possível dar a ver, no online, o processo de inferências e as causas e consequências que determinam dada equação, que delimitam dado raciocínio? Não se perde, radicalmente – até à raiz! – a ideia de ensino?

Confesso a minha total descrença em relação a um modelo de educação que absolutize o ensino em rede em detrimento dos textos, dos livros, sejam eles de ciências exactas ou de ciências sociais. Os nossos alunos não precisam de mais tecnologia – isso têm de sobra! Estão enredados nela! Precisam que, com pedagogia, lhes seja dito que, após as aulas, é fundamental irem para casa, protegendo-se a si e aos seus. Se houvesse consciência cidadã – que a Literatura dá, que a História lembra, que as Ciências e a Filosofia imprimem quando são scientia –, não teríamos centenas de jovens, nas esplanadas de Lisboa, ou do Porto, de Braga ou de Faro, depois das aulas (já comprometidas por esta pandemia, pelas interrupções do regime semi-digital, já artificiais por razões profundas que não cabe aqui elencar) bebericando a sua cerveja, ou, aos magotes, ululando pelas avenidas.

Não é, pois, fechando as escolas, nem pondo em causa o processo ensino-aprendizagem que esta pandemia se combate. Há uma ideologia oca, burocrática, que faz “delete” em relação a tudo o que é cultura livresca, ponderação e tempo no acto de ensinar e de aprender. Essa ideologia, que esta pandemia aprofunda, ou generaliza, transforma os professores em meros técnicos, em gestores de plataformas e transforma os alunos em meros receptores de aulas sem alma. A factura a pagar – tenho-o dito até à exaustão e digo-o para quantos crêem que o digital é a panaceia – será terrível. As crianças e adolescentes que estudam hoje na escola portuguesa serão adultos desinteressados de toda a leitura, homens e mulheres que não saberão nada de História, serão meros funcionários – gente que só funciona (sabem muito de computadores e nada de coisa nenhuma), mas não pensam, não sabem falar, não escrevem bem. E assim posso perguntar: que classe política teremos, que país, que elites? O online? Fechar as escolas? Uma vitória de Pirro. Em boa hora o Governo agiu bem. Manter livrarias e outros espaços culturais abertos – e pela mesma ordem de razões –, eis o que está urge fazer de modo a que quem trabalha na cultura, viva.

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