A argamassa do Bem e do Mal de Ventura vem de muito longe

A sociedade dividida entre os puros e os impuros com a ideia subjacente de que os puros têm o direito de se livrarem dos impuros – ciganos, judeus, migrantes, refugiados, pobres e marginalizados e outros. É neste rebanho que o pastor André prega e recruta almas para as vender aos seus patrões.

O ser humano é “naturalmente” de direita no sentido que escreveu Eduardo Lourenço na obra Esquerda na encruzilhada ou fora da História (edição Gradiva): “O triunfo da força sobre a fraqueza, como fazendo corpo com os privilégios de toda a espécie… assumidos e vividos como forma de privilégio social…” O que é, aliás, mais consentânea com a própria Natureza e daí a luta sem tréguas em que os fortes esmagam os fracos. Já António Vieira, no século XVII, falava dos peixes grandes que comem os pequenos numa alegoria à sociedade esclavagista e profundamente desigual.

O discurso de ódio de Trump contra os imigrantes, as minorias, as mulheres, os homossexuais, com os argumentos mais primários, dirigem-se a esses sentimentos de brutalidade próximos da Natureza com as suas leis de sobrevivência; como se a comunidade humana se baseie nas leis da Natureza, como se todos os degraus civilizacionais voltassem ao chão da selvajaria.

Assinala António Damásio que o ser humano caracteriza-se igualmente pela elevação dos sentimentos de sentir compaixão pela dor dos outros e daí até as primeiras manifestações pelos mortos; uma espécie de passaporte sentimental, como é o caso dos primeiros sepulcros na expressão de Edgar Morin (L'homme et la mort, edição Points ), para não deixar os mortos à mercê das bestas.

E que caminhos se percorreram desde a pré-História até hoje, quantos milénios? E a natureza humana, sendo a mesma que no tempo de Homero e Sócrates, capaz de dar guarida aos refugiados como nas tragédias de Ésquilo, é também a mesma que persegue e legitima o esclavagismo, a servidão da gleba e o imperialismo. A mesma que derrubou a monarquia e o feudalismo em França na revolução de 1789, o czarismo em 1917. A mesma que colocou Hitler no poder. A mesma que deu maiorias a Trump e a Bolsonaro. A mesma que em Portugal abriu as portas com Abril de 1974. Tanto caminho para se chegar aqui.

Já se discutiu nos EUA (não há muito) se, tal como acontece na Arábia Saudita, as pessoas podem assistir às execuções públicas, como há séculos nas punições da execução por fogueira do Santo Ofício. Talvez o cheiro da crueldade seja a aspiração máxima deste desmando de crueldade. Somos todos filhos do tempo, todos.

Os sentimentos mais básicos, mais primários que existem dentro de cada ser humano poderiam eventualmente dar maioria à pena de morte e levar a desistir da reinserção social, princípio luminoso que nos norteia enquanto sociedade avançada e civilizada.

A ideia de uma ditadura do Bem sobre o Mal insere-se nessa faceta terrível do percurso humano, pois quem define o Mal é quem define o Bem, ou seja, o Bem e o Mal nas mãos da mesma entidade totalitária, detentora desse poder absoluto capaz de decidir o que é o Bem e o Mal.

O Bem, para André Ventura, é a canalização das energias primárias contra os outros numa espécie de guerra santa para legitimar a violência contra os excomungados no plano social, para ir laminando por camadas os diversos inimigos até ficarem só os eleitos da ditadura do Bem. A “guerra” anunciada em cartazes por todo o país é contra os mais fracos e desprotegidos para os eliminar por constituírem um insucesso e darem prejuízo. Os seres humanos equiparados a empresas que devem fechar os olhos em caso de insolvência ou falência.

Por outro lado, é um recuo milenar às velhas religiões do Bem e do Mal, como o zoroastrismo, só que com a introdução dos velhos preceitos religiosos para a esfera política, o que constitui a liquidação do Estado de Direito democrático.

A sociedade dividida entre os puros e os impuros com a ideia subjacente de que os puros têm o direito de se livrarem dos impuros – ciganos, judeus, migrantes, refugiados, pobres e marginalizados e outros.

Esta ideia só faz percurso porque há nas sociedades atuais muita gente desprezada, humilhada, que se quer “vingar” do sucedido e na sua visão o que tem de imediato no plano social para responsabilizar por essa situação é o mais fácil, os que Ventura aponta como quase delinquentes. É neste rebanho que o pastor André prega e recruta almas para as vender aos seus patrões.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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