O nosso natal sueco e o ruído

De parte a parte, ontem como hoje, a ideologia cerrada e as crenças dos grupos de pressão estão a dificultar o melhor combate possível a este maldito vírus. E, na altura em que mais precisávamos, o Governo foi cobarde e não enfrentou todas estas matilhas.

Não foi preciso esperar até ao final do último ano para entendê-lo. Poucos como os que se informam bem, leem, analisam e pensam por si com base em factos não precisaram das declarações entre outubro e dezembro do rei ou de responsáveis suecos a referir que a sua estratégia tinha falhado em toda a linha. Isso já era percetível em junho. A taxa de mortalidade dez vezes mais alta que a dos seus vizinhos do Norte e uma crise económica a correr à mesma velocidade indiciavam-no.

Sabíamos também praticamente desde o início desta pandemia, entre março e abril, que os setores mais afetados pelas medidas de confinamento dificilmente olhariam para as mesmas medidas com bons olhos no futuro. Algo que é compreensível, mas que deve ser gerido e entendido tendo em conta a prioridade máxima, na qual a vida de todos e de cada um é naturalmente o valor supremo da sociedade. Governar nesta altura é também isso. Desligar do ruído sempre que é preciso. Afinal de contas, cá como em qualquer outro lugar da Europa, a única estratégia que deteve de alguma forma as mortes e os contágios foram as medidas mais restritivas e de confinamento. As mesmas que nos permitiram ter um verão.

Já com os efeitos da segunda vaga em força e com algum destes dados adquiridos, o que decidimos fazer? Chamar para nós alguma desta estratégia sueca do início desta luta e num dos momentos mais cruciais. Enquanto, no natal, muitos países aprenderam alguma coisa a partir dos erros da sua estratégia inicial (!) e aplicaram medidas fortemente restritivas, nós apostamos tudo num certo relaxamento e na aplicação inconsciente deste modelo falhado. Da extrema esquerda à extrema direita, todos, sem exceção, queriam o natal das famílias e esqueceram o que já devia ser lei. Era popular fazê-lo. Dos nossos monárquicos ao Chega, passando por determinados setores da igreja, a simples possibilidade do cancelamento do natal já ameaçava a preparação de comunicados nos quais se refutava o facto de isto ser uma decisão da esquerda que não gosta ou respeita a família. Um Estado demasiado laico, entre outro tipo de argumentação ligeiramente mais aceitável como o facto de muitas famílias estarem separadas há demasiado tempo. Mas a realidade é que de parte a parte, ontem como hoje, a ideologia cerrada e as crenças dos grupos de pressão estão a dificultar o melhor combate possível a este maldito vírus. Na altura em que mais precisávamos, o Governo foi cobarde e não enfrentou todas estas matilhas. E as consequências dessa necessidade de popularidade momentânea aí estão a entrar pelos nossos hospitais a uma velocidade furiosa.

Toda esta hipocrisia que reina hoje nas críticas de outros quadrantes dos partidos políticos ao relaxamento no natal, nos quais a direita mais conservadora e extremada leva vantagem, dá alguma pena. Pena, porque quem faz uma análise minimamente séria e independente apercebe-se que, de um extremo ao outro na oposição, não temos realmente uma classe dirigente à altura do momento. Continua embrenhada nas politiquices. Mente descaradamente em relação à sua posição de ontem para ir ao encontro do populismo ou o popular de hoje. E um Governo pouco melhor que foi demasiado medroso, procurando ser popularucho quando mais se precisava que não o fosse e deixando-se levar pela política de rede social ou naquela que é desenvolvida por influência dos incautos.

Enquanto comunidade, vivemos o tempo mais difícil e desafiante das nossas vidas. Precisamos de políticos que não estejam reféns de tudo isto e dos mais variados setores. O lugar comum da necessidade dos estadistas sem medo do peso da manada nunca fez tanto sentido. Sobram exemplos globais como o Papa Francisco que, conhecendo determinadas partes da igreja, não deixou de apelar à vacinação e criticou veemente o egoísmo daqueles que se antecipam à ciência e a põem em causa sem qualquer legitimidade. Outros que não o eram, mas que estão a saber ir ao encontro desse mesmo estadismo que o momento exige. 

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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