Desconhece-se a origem de 87% dos contágios. Rastreadores aumentam

No início do mês existiam 763 profissionais equivalentes a tempo inteiro a fazer inquéritos, mais 302 do que no início de Dezembro, segundo dados da Direcção-Geral da Saúde. No Infarmed, especialistas revelam dificuldades no rastreio e apontam para 14 mil novos casos diários no fim de Janeiro - que podem chegar aos 37 mil se não houver confinamento

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Rui Gaudencio

Apesar da grande quantidade de testes que inúmeras famílias fizeram antes do Natal e do Ano Novo, os casos positivos que foram identificados não tiveram o controlo epidemiológico adequado. Ou seja, a larga maioria dos infectados, 87%, não foi contactada pelas autoridades de saúde para ser feito o habitual rastreio epidemiológico de forma a tentar determinar a cadeia de contágio. Esta situação foi reportada pelos especialistas durante a segunda parte, que decorreu à porta fechada, da sessão no Infarmed sobre a covid-19 que juntou ontem vários responsáveis políticos, confirmou o PÚBLICO.

Segundo os dados que foram revelados, houve mais testes no total, mas menos testes onde realmente interessava: nas possíveis cadeias de contágio. Os especialistas estimam mesmo que tenham ficado por identificar pelo menos 5000 casos positivos por causa desta falta de testagem. O resultado? As cadeias de transmissão ficaram incontroláveis e quem contagiou esses infectados continuou, sem saber, a contagiar mais pessoas. Foi aí que surgiu o número: não se sabe como foram contagiados 87% dos casos positivos - fosse porque os próprios não sabiam, fosse porque nunca foram questionados.

Esta segunda-feira, o país tinha 494 surtos activos, segundo a Direcção-Geral da Saúde (DGS). “Relativamente aos contextos, registam-se 246 surtos activos em Estabelecimentos Residenciais Para Idosos/Instituições Particulares de Segurança Social (237 IPSS/IPSS mais nove na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados), 63 em estabelecimentos de ensino (creches, escolas e ensino superior) e 31 em instituições de saúde”, especificou a DGS em resposta ao PÚBLICO.

A realização dos inquéritos epidemiológicos, e respectivo rastreio de contactos de alto risco, é desde o início uma das peças fundamentais para o combate à pandemia. A DGS revelou que a 9 de Janeiro existiam “763 profissionais ETI (equivalentes a tempo inteiro) a realizar inquéritos epidemiológicos em Portugal, dos quais 207 na ARS Norte, 198 no Centro, 247 em Lisboa e Vale do Tejo, 38 no Alentejo e 73 no Algarve”. A DGS ressalva que “estes números dizem respeito a profissionais ETI, pelo que podem não corresponder ao número exacto de pessoas que estão a realizar inquéritos epidemiológicos”.

É um acréscimo de mais 302 profissionais, já que a 8 de Dezembro existiam 461 profissionais de saúde ETI a realizar inquéritos epidemiológicos. Segundo a DGS, adicionalmente aos mais de 700 rastreadores, “existem actualmente 196 profissionais ETI extra a realizar inquéritos epidemiológicos, dos quais 123 na região Norte, 46 na região de LVT, 20 no Alentejo e 7 no Algarve”. Números dinâmicos, que vão “sendo adaptados às necessidades sentidas em cada momento, de acordo com a evolução da situação epidemiológica”.

Em algumas regiões, o reforço está a ser garantido por militares. Ainda esta terça-feira o Ministério da Defesa Nacional anunciou o apoio à realização de rastreios epidemiológicos “com uma segunda equipa de 26 militares da marinha” no Alentejo. Iniciam funções esta quinta-feira, juntando-se aos outros 26 militares que desde 19 de Novembro já acompanharam “mais de 1200 casos ao longo de quase dois meses” naquela região.

“Nesta frente de colaboração com as autoridades de saúde pública, estão actualmente em funções, em todo o país, 448 militares da Marinha, Exército e Força Aérea, divididos por 23 equipas”, revelou ainda o Ministério da Defesa Nacional.

14 mil casos em duas semanas

Durante a primeira parte da reunião no Infarmed, que foi transmitida online, os especialistas alertaram para um cenário de extrema gravidade se não forem tomadas medidas. “Temos pela frente as semanas mais difíceis da pandemia”, alertou o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, avisando que mesmo com o confinamento geral e o encerramento das escolas “dificilmente evitaremos os 14 mil casos daqui a duas semanas”, data em que o número de mortos por covid-19 rondará os 150 por dia.

De acordo com as previsões do professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, demorará pelo menos oito semanas até que o número de infecções regresse ao do período pré Natal. Até que se chegue ao pico – equivalente às 14 mil infecções diárias – ter-se-á de aguardar duas semanas, sendo depois necessárias outras três para que o número de casos desça até aos sete mil diários. Depois, para que o número de infecções diárias se estabilize entre as sete mil e as 3500, será necessário aguardar outras três semanas.

“Houve um aumento da incidência muito acentuado” depois do Natal, salientou Baltazar Nunes, epidemiologista do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa), explicando que houve “um aumento de forma muito rápida” do risco de transmissibilidade (o chamado R). “A 25 de Dezembro, o R era de 0,98 e passou para 1,22 a 30 de Dezembro” em termos nacionais, deixando o país numa “situação de risco de transmissão elevado”. A região norte regista o valor mais baixo (1,18) e o Algarve o mais alto (1,29).

Divergência em relação às escolas

Foi o possível encerramento das escolas que mais divergência criou entre as opiniões dos especialistas. Baltazar Nunes apresentou uma análise de três cenários concluindo que fechar as escolas permitirá reduzir a transmissão do vírus de forma mais acentuada, mas se tudo o resto confinar, será possível fazer descer o R mesmo com aulas presenciais. A questão está no grau de mobilidade se as escolas permanecerem a funcionar em aulas presenciais para todos os anos lectivos.

No final da reunião, o Primeiro-Ministro disse que “houve matérias em que houve convergência total, designadamente sobre a ideia de que não se pode perder tempo e que é necessário tomar medidas para travar o crescimento da pandemia”, mas que “houve um ponto em concreto sobre o qual se verificou uma divergência particularmente viva entre os cientistas: as escolas e a faixa etária dos 12 anos para cima”.

“Apesar de existir esta divergência, foi consensual para a generalidade dos cientistas que a escola em si não é um foco de infecção ou de perturbação”, reforçou António Costa, explicando que “as escolas podem representar um factor de movimentação de pessoas e, dessa movimentação, resulta naturalmente um maior risco de transmissão”.

O Primeiro-Ministro assumiu que nesta situação de desacordo, o decisor político “ouvirá os argumentos de uns e de outros e terá depois a sua própria inteligência e capacidade de percepção no sentido de tomar uma decisão perante os argumentos diferenciados.” Salientou ainda a necessidade de diálogo com instituições como a Confederação Nacional de Associações de Pais e a Associação dos Directores Escolares. Com Lusa

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