Beco do recolhimento

Choras ao amanhecer, deitado ao meu lado. Queres pedir desculpa e ser meigo agora, fazer as pazes. Desfazes-te em mel, a tua voz não é a mesma da madrugada, pareces outra pessoa.

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Estamos deitados na cama. Estás ao meu lado mas é como se não estivesses, e eu também estou e não estou, sou mais massa de carne dormente e invisível do que pessoa de carne e osso.

O tecto do quarto serve de espelho turvo: dois corpos deitados lado a lado, duas pessoas devastadas pela violência da madrugada anterior, passada quase sem dormir, em branco. Insultos, agressão a despropósito, ódio injustificado. Ainda tentaste justificar a tua violência sobre mim dizendo: “Tens de deixar de me estar sempre a contrariar, isso irrita-me.” Como o marido que bate na mulher e diz que a culpa é dela, que parece que o contraria de propósito, só para o enervar.

O tecto do quarto mantém-se branco como algodão doce da feira, e eu sei por experiência que estou demasiado pálida. Sabe a fel este silêncio de bigorna suspensa sobre as nossas cabeças.

Choras ao amanhecer, deitado ao meu lado. Queres pedir desculpa e ser meigo agora, fazer as pazes. Desfazes-te em mel, a tua voz não é a mesma da madrugada, pareces outra pessoa. Convidas-me para um passeio e os meus passos trémulos acompanham a custo os teus pelas ruas da cidade. Tenho a cabeça cheia de areia, dunas imóveis e escaldantes no meu cérebro cansado. Queres ir às compras, ofereces-me um livro e um bolo. Sinto-me uma criança a ser mimada por alguém que ama. Não entendo porque não podes ser sempre assim, bom para mim. Como agora, como hoje, na livraria e na pastelaria.

Por momentos, o afecto é um aguaceiro sobre as dunas ferventes da minha cabeça. O afecto, mesmo que temporário, alivia-me a febre do deserto. No reflexo de uma montra vejo a minha cara transformada pela noite anterior. Os meus olhos incham e “esverdeiam” com o som dos insultos. Não é por fora que dói a poluição sonora, os tímpanos sobrevivem bem aos gritos, não prejudicam a saúde auditiva por aí além. O ruído que emitem os algozes torna-se insignificante comparado com o estrondo profundo e invisível.

Depois de noites como esta sei que existe uma alma, que temos de ter uma alma, e que sai prejudicada pela tal agressão sonora, porque nos dói infinitamente algo impalpável. Quando o mais íntimo de nós é atacado, ficamos cativos de algo ou de alguém, e perante um paradoxo — o beco do recolhimento. O beco que, por definição, é algo sem saída, e o recolhimento que serve para nos proteger, seja um espaço ou uma acção. 

Voltámos, então, para o nosso beco do recolhimento e comemos a sopa, que eu fiz, em frente à televisão.

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