O baile do Ventura

Nestes tempos tão duros, enfraquecer a esquerda parlamentar, no meu entender, é mais grave do que o lugar que agora vai ocupar Ventura.

Diz-se que o partido do Ventura está a crescer porque a comunicação social falou e fala dele mais do que devia, não concordo. O que talvez tenha acontecido, e ainda esteja a acontecer, é que, sendo um fenómeno novo em Portugal, ainda todos estejamos a aprender a melhor forma de falar dele e do que ele representa. E se calhar é mais importante falar do que ele representa do que falar dele, mas por ele ser a cara, e voz única do seu partido, é muito difícil falar do que ele representa sem falar dele. Parece um beco sem saída. É como se ele tivesse o poder de dar o mote, e nós tivéssemos que dançar a sua música.

Para estas eleições presidenciais, logo de início, pôs a música a tocar, e à minha volta vejo muita gente a dançar no baile dele. Forjou um inimigo, neste caso uma inimiga. Disse que se demitiria se ficasse atrás de Ana Gomes, porquê? Talvez porque sabe que o presidente vai ser reeleito, e que por muitos votos que Ana Gomes venha a obter, esses votos não o afligem. Ana Gomes não vai tomar conta do PS após as eleições, nem nada indica que vá formar um partido. Simbolicamente é mau se ele ficar à frente de Ana Gomes, certo, e espero que não fique. Mas estou convicta de que isso será tema para umas duas semanas após as eleições. Depois disso voltaremos à vida real, às questões do dia a dia. Às questões complicadíssimas que temos que resolver, a resposta à covid, a crise económica, as escolhas a fazer com o dinheiro que vai chegar, etc.. E é na vida real que se combate a extrema-direita. Tenho muita admiração por Ana Gomes, mas, e apesar de serem eleições diferentes, primeiro e segundo mandato presidencial, o que aconteceu aos votos em Sampaio da Nóvoa é o mesmo que vai acontecer aos votos em Ana Gomes. Ana Gomes tem feito um trabalho notável contra a corrupção, tem um passado extraordinário como embaixadora, mas o trabalho que faz hoje, creio ser o mesmo que continuará a fazer após as eleições.

Nestes tempos tão duros, enfraquecer a esquerda parlamentar, no meu entender, é mais grave do que o lugar que agora vai ocupar Ventura. É daqui até às legislativas que se tem que que fazer o trabalho, não só de o desmascarar, mas também, o de melhorar a vida de todos, e de parte do eleitorado que vota nesse partido.

Há uma diferença de escala gigante entre o nosso problema e o problema dos Estados Unidos, mas cada um tem a escala que tem, e isso não deve ser razão para importar menos o que se passa cá. A direita tradicional tem que pôr os olhos nos Estados Unidos.

No futuro, se o partido do Ventura continuar a crescer, e se a direita tradicional abrir os olhos, e se a direita tradicional se olhar ao espelho, vai romper com o Ventura. Ou por boas razões, ou porque os seus partidos vão sendo engolidos pelo do Ventura. Mas se ao mesmo tempo que isso tudo acontece, a esquerda à esquerda do PS se enfraquecer, o PS, talvez para salvar a democracia, ou talvez com essa desculpa, porque ao longo da história o PS sempre foi um partido oscilante, voltará à escolha do bloco central, e Portugal e a vida dos portugueses nunca sairá da cepa torta. Nunca será um país solar, feliz e solidário. Nunca será um país que apesar de ter só duzentos quilómetros de largura, deixará de ter tantos interiores porque esse bloco teve décadas para acabar com eles, e não quis, preferindo até criar mais. Deixou, como agora está tão visível, os mais velhos sentirem-se velhos porque pobres e isolados. Uma pessoa com a cabeça ocupada, uma pessoa que leia, que vá ao teatro, ao cinema, não se sente velho. Quem tenha uma reforma boa que permita passear, viajar, usa a vida, o tempo livre. O que herdámos do bloco central foi a pobreza, a tristeza e a desigualdade, o desemprego, a precariedade, o isolamento. Vilas e aldeias sem transportes, sem escolas, florestas abandonadas.

Temos que assumir que o Ventura nos está a dar um baile, e não é nenhuma vergonha assumir isso agora. Vergonha será, se um dia mais tarde, tivermos que assumir que dançámos a música que ele quis. Digo “ele” por ser mais simples, claro ele não está sozinho no mundo, e alguém lhe pôs o violino nas mãos. Dará trabalho resolver este problema, mas resolve-se. Acredito.

           

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