Dia 135: Aprender é com todos os sentidos

Quantos mais sentidos se usarem na mesma tarefa, não só mais fácil é aprender, mas também mais sedimentada fica a aprendizagem. Tão óbvio, mas tão genial. Devia ser suficiente para revolucionar a escola.

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"Quantas vezes troçaram de mim porque eu dizia que quando não tinha os óculos postos, ouvia mal?" @DESIGNER.SANDRAF

Ana,

Espreita só isto, só precisas de ver o princípio, . Num primeiro momento um homem diz o som BA, BA, BA. E os lábios mexem em conformidade com este som. Nós ouvimos BA, BA, BA. Mas, logo depois, continua a dizer o mesmo BA, BA, BA mas desta vez a imagem mostra-nos os lábios a moverem-se como se estivesse a dizer FA, FA, FA. E o que ouvimos? FA, FA, FA e não BA, BA, BA, que é o som que ele efectivamente diz.

É o chamado efeito McGurk, e revela da maneira mais simples possível que acreditamos mais no que vemos, do que naquilo que ouvimos, e basicamente como o não nos podemos fiar nos sentidos. Enganam-nos. E bem: já reparaste, por exemplo, que numa sala de cinema o som vem de colunas dos lados e, no entanto, nós juraríamos sobre a Bíblia que sai da boca dos personagens que vemos na tela? Lindo, não é?

Mas pus-me a pensar, e concluí que é exactamente por isto que, agora que andamos todos de máscara, temos muito mais dificuldade em entender o que os outros nos dizem. Não é porque ouvimos mal ou a máscara abafe o som, como imaginamos, mas porque estamos privados da visão dos lábios da outra pessoa. É um alívio para toda a gente que tem temido estar a perder a audição, e explica porque é que os coitados dos que ouvem já mal, ficam à nora de máscara posta. Mas, para mim, tem também sabor a birra ganha: quantas vezes troçaram de mim porque eu dizia que quando não tinha os óculos postos, ouvia mal?

Bem, mas mais importante ainda é o que a partir desta constatação, os investigadores concluíram que quando queremos aprender qualquer coisa mais difícil devemos usar vários sentidos ao mesmo tempo. Por exemplo, ler alto o enunciado de um teste. Mexer em cubos enquanto aprendemos a contar. Saborear os produtos ao cozinhar uma receita complicada. E quantos mais sentidos se usarem na mesma tarefa, não só mais fácil é aprender, mas também mais sedimentada fica a aprendizagem.

Tão óbvio, mas tão genial. Devia ser suficiente para revolucionar a escola, para acabar com as aulas de 90 minutos, de meninos sentadinhos e quietos? Mas pelos vistos não foi. O efeito McGurk foi descoberto pelo senhor Harry McGurk em... 1976. Embora já tenham passado 45 anos, quase meio século, achas que o facto do Birras de Mãe o ter voltado a trazer à luz vai fazer o milagre?

Fico ansiosamente à espera da tua resposta.


Querida Mãe,

Quando vejo estas coisas fico num misto de “que espectáculo!” e de “Oh, Meu Deus se não podemos confiar nos nossos sentidos, então podemos confiar em quê?!?”. Mas depois conformo-me e reconheço de que é mais uma prova do disparate que é toda esta nossa ilusão de que somos tão perspicazes, que os nossos juízos são infalíveis e as conclusões a que chegamos irrefutáveis. Parece-me que podemos mandar este vídeo aos apoiantes de Trump, para que no mínimo dos mínimos percebam que temos mesmo de questionar aquilo em que acreditamos.

Ah mãe, mas a sua provocação da escola não caiu em saco-roto. Consegue sempre indignar-me a dificuldade que o nosso sistema educativo tem de fechar os ouvidos àquilo que está mais do que cientificamente provado. Conhecimento que posto em prática ajudaria a resolver problemas de comportamento, dificuldades de aprendizagem, contribuiria para mudar a taxa ridiculamente alta de crianças e adolescentes que odeiam a escola, e motivaria tanto alunos como professores.

Em lugar de promoverem mudanças profundas, preferem mudar manuais escolares, refrescando o grafismo e as imagens, como se essas operações cosméticas pudessem alguma vez substituir o mexer, tocar, sentir e experimentar. Ao “Ah, mas são muitos alunos”, “Ah, mas isso só funciona noutros países”, “Ah, mas não há dinheiro”, juntou-se agora um omnipresente “Até fazíamos, mas a covid não deixa!”.

Mudar pode não ser fácil, mas há quem mude, e com resultados extraordinários que deveriam chegar para incentivar outros a seguir o mesmo caminho — vejo diariamente exemplos de professores e escolas (públicas e privadas) onde este desejo é levado muito a sério, há muito tempo, e onde entra pelos olhos dentro a diferença da experiência que é oferecida aos alunos.

E não começa por comprar brinquedos de madeira caríssimos, nem obriga a ter uma floresta como recreio. Começa sabe como? Questionando se aquilo que ouvimos e aprendemos, aquilo que vivemos enquanto alunos, ainda funciona para nós e para os nossos estudantes. Questionando se as crianças têm mesmo de ficar sentadas e quietas horas a fio para aprender aquilo que lhes queremos ensinar. Se é preciso mesmo colorirem por dentro das linhas do 14.500.º desenho de uma folha de Outono, em vez de ficarem só a olhar e a conversar sobre uma folha verdadeira. Quando nos perguntamos por que estamos a fazer o que fazemos e se haveria alguma outra forma (quem sabe mais divertida para todos) de o fazer, tudo o resto virá por acréscimo.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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