Retrato de uma campanha com um elefante na sala

Sem campanha nas ruas (o que não é mau), com a pandemia a ameaçar uma abstenção insustentável, faz falta uma segunda ronda de debates.

A campanha para as presidenciais está praticamente esgotada. Com a pandemia e o mais que provável confinamento geral, não haverá lugar para o circuito da carne assada, as arruadas serão vazias, os comícios desertos e o espalhafato contraproducente. O essencial da mensagem e do perfil dos candidatos ficará por isso cristalizado nos debates televisivos e nas entrevistas que os jornais fizerem aos candidatos nos próximos dias.

Deu para saber que há quem acredite que a proibição de partidos e o silenciamento de candidatos são um antídoto contra o extremismo; sabemos que hoje há quem, como André Ventura, não tenha o mínimo pudor para defender em público ideias xenófobas, sectárias e atentatórias da decência e do Estado de direito; sabemos que o Bloco e o PCP são incapazes de produzir uma ideia consistente que vá para lá da defesa do SNS e o ataque à legislação laboral; sabemos que a calúnia e a infâmia como recurso eleitoral não são um exclusivo de André Ventura, mas que seduzem também Ana Gomes; e sabemos que Marcelo Rebelo de Sousa foi obrigado pela realidade a despir a farda do monarca etéreo para combater como um soldado.

Não é muito, mas é o suficiente para percebermos pelo menos duas coisas: que o debate político português se viciou no tema do Chega; e que os grandes desafios com que Portugal se confronta passaram ao lado da campanha. Sobre a primeira, condescenda-se com o efeito da novidade e com o desejo permanente da esquerda mais à esquerda em encontrar prenúncios de fascismo para mobilizar as suas hostes.

Daí a necessidade de Ana Gomes e de Marisa Matias insistirem no proibicionismo. Sobre a segunda, não há grandes desculpas. Passar ao lado do próximo ciclo de fundos europeus, dos desafios das alterações climáticas em Portugal, da transição digital, da desigualdade crescente ou dos constrangimentos da economia para sustentar um Estado social moderno e inclusivo é lamentável.

Os debates foram vivos, mas insuficientes. Deu para perceber que João Ferreira é seguro na cartilha do PCP, que Marisa Matias está em baixo de forma e se afundou, que André Ventura é um feirante a vender pechisbeque por prata, que Tiago Mayan se fez político apesar de ter engolido a cassete do Estado mínimo, que a inteligência de Marcelo é ainda uma temível máquina política, que a ortodoxia justicialista de Ana Gomes a afasta do centro-esquerda, que Vitorino Silva disse com pedrinhas o que a esquerda não soube dizer sobre o racismo de Ventura.

Sem campanha nas ruas (o que não é mau), com a pandemia a ameaçar uma abstenção insustentável, faz falta uma segunda ronda de debates.

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