O cientista sem bata (ou o problema da chamada “ciência mole”)

Diminuir o papel do cientista social é dizer que todos somos capazes de ler, interpretar e, acima de tudo, ancorar com fundamentação teórica sólida os fenómenos sociais. Uma espécie de ciência que não precisa de nada para a fundamentar.

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Fitore F/Unsplash

Está no imaginário de qualquer um e basta um jogo para demonstrar esta ideia. Um cartão do Pictionary pede que se descreva um cientista. O que desenharias? Muito provavelmente, uma bancada alta, vários tubos de ensaio, um balão volumétrico e um indivíduo de bata branca.

Quando pensamos na figura do cientista, é quase certo associarmos a ideia ao papel das ditas “ciências duras”. O problema não está na associação em si, mas é sintoma de uma tendência mais alargada que diminuiu o lugar das ciências sociais e humanas — as chamadas “ciências moles”. As consequências evidenciam-se na repercussão, notoriedade e, em última instância, nas opções de financiamento disponível para a área.

O erro original está na divisão forçada, que procura descrever duas formas distintas de produzir conhecimento científico: uma mais rigorosa do que a outra, uma mais útil do que a outra, uma mais robusta do que a outra. O que não poderia estar mais errado.

As “ciências duras” são vistas como aquelas que se ocupam dos fenómenos naturais. Numa observação crua, poderia dizer-se que se apoiam tendencialmente em métodos quantitativos e, como tal, com um suporte transversal na matemática. Em abstracto, são mais ciência quanto mais se apoiam em processos matemáticos. Com isso, cria-se a ideia de que as ciências sociais, pela adopção de outras metodologias, não se valem de um método preciso e, por isso, têm resultados menos vinculativos. Uma ciência que para nada serve, que nada “descobre” e que, talvez por isso, não precise dos mesmos recursos quando comparada com “a verdadeira ciência”.

Diminuir o papel do cientista social é dizer que todos somos capazes de ler, interpretar e, acima de tudo, ancorar com fundamentação teórica sólida os fenómenos sociais. Uma espécie de ciência que não precisa de nada para a fundamentar. E se qualquer um o pode fazer, porquê atribuir financiamento, seja público (que ainda assim subsiste) ou privado (que raramente se interessa por aquilo que não pode ser mensurado num curto intervalo de tempo)?

As ciências duras são boas a construir algoritmos, a lidar com grande volume de dados, a produzir vacinas para combater a covid-19, mas são deficitárias a explicar algo que parece ser mais básico: o humano. Podemos ter algoritmos que personalizam a nossa experiência online, mas estes não explicam os problemas da radicalização ideológica e os efeitos nocivos da desinformação. As vacinas ajudam a combater uma doença, mas não explicam a razão pela qual há quem se recuse a tomá-las e quem acredite que estas têm um chip lá dentro.

As ditas “ciências moles” são a melhor resposta que temos para compreender o comportamento social e humano. Se matematicamente não se consegue explicar tudo, perceba-se que as pessoas não são autómatos programados para reagirem da mesma forma. Isto de nenhum modo quer dizer que o método científico nas ciências sociais não possa ser rigoroso e preciso. De facto, nos últimos anos têm surgido, dentro das ciências sociais, metodologias que procuram abraçar estas duas tendências. Uma perspectiva mais quantitativa, que continua a incorporar uma leitura, e interpretação mais qualitativa.

Entretanto, é preciso perceber que nenhuma perspectiva se sobrepõe a outra, como se de uma hierarquia se tratasse. São saberes que explicam as duas faces de uma mesma moeda e as políticas científicas utilitárias deveriam perceber isso de uma vez por todas. É tempo de reconhecer que o cientista social é tão relevante quanto o cientista de bancada. Os dois lidam com incógnitas; os cálculos é que podem ser de naturezas distintas.

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