“Temos de adiar cirurgias oncológicas!”

Quando se fala em aumento da mortalidade de doentes não-covid como dano colateral da pandemia é imperativo que se compreenda que não é por escolha dos decisores políticos, ou da gestão hospitalar ou dos próprios médicos.

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"Os danos colaterais da pandemia, estarão sempre à proporção do descontrolo da pandemia" Reuters/Fabrizio Bensch

Isto é sensacionalismo, mas também é verdade. Quando me dão a oportunidade de comunicar em nome da minha profissão faço-o com um sentido de honestidade intelectual onde me exijo o máximo, e sinto-me obrigado a transparecer com rigor o melhor dos meus pensamentos médicos e o melhor dos meus pensamentos humanos. A SIC depois de me entrevistar em directo sobre a situação nos Cuidados Intensivos durante dez minutos escolheu para título da notícia a frase que tem mais poder de clickbait possível: “Temos de adiar cirurgias, algumas oncológicas, porque temos pessoas a morrer com covid-19.” Esta frase não resume de todo a minha intervenção em que tento explicar os enormes desafios dos Cuidados Intensivos dos últimos meses.

Mas estou eu a criticar a SIC por ter escolhido uma frase sensacionalista? Não propriamente. O que eu estou a tentar é desconstruí-la e também expor a dualidade dos seus efeitos, e com isto tentarei dissecar um dos argumentos mais fulcrais que divide a mente das pessoas: os doentes “não-covid”.

Nós poderíamos dizer que um Infecciologista, Pneumologista ou Virologista está tendencialmente e desequilibradamente obcecado com a covid-19, por ser uma doença do foro íntimo dos seus saberes, e por estar assoberbado por esta avalanche de doentes causada por um vírus altamente contagioso que atinge essencialmente os pulmões e mata muita gente. E depois ouviríamos Cardiologistas, Oncologistas, Cirurgiões, etc., etc., a dizer: “E os nossos doentes?” Ou seja, poderá haver uma tendência de acusarmos os que mais estão a sofrer de estar a hiperbolizar o “seu” problema. Compreende-se a dúvida.

No entanto, penso que é justo dizer que neste enorme dilema ético a Medicina Intensiva (ou Cuidados Intensivos) é bastante democrática porque intercepta quase todas as áreas da medicina. Tratamos politraumatizados graves, pós-operatórios de grandes cirurgias cardíacas, neurocirurgias, abdominais, etc., doentes com enfartes do miocárdio e AVC graves, todo o tipo de infecções víricas, bacterianas, etc., e também tratamos descompensações graves de diabetes, de hipertensão e muito, muito mais. E são todos estes doentes que estamos a prejudicar quando perdemos o controlo da pandemia. Nós não temos doentes preferidos. Nós tratamos pessoas e salvamos vidas.

Quando se fala em aumento da mortalidade de doentes não-covid como dano colateral da pandemia é imperativo que se compreenda que não é por escolha dos decisores políticos, ou da gestão hospitalar ou dos próprios médicos. O descontrolo da pandemia absorve recursos humanos que são coisas que não se encontram à venda no OLX, muito menos os mais diferenciados. Além disso há um dilema de triagem de prioridades. A medicina preventiva, a promoção para a saúde salva muito mais vidas e anos de vida, do que os médicos que, como eu, lidam com a vida e a morte no imediato.

Mas compreenderão que um dos princípios éticos transversais ao exercício da medicina é tratar primeiro quem está em risco de morrer primeiro. E mesmo que tivéssemos a frieza e a desumanidade de deixar morrer uns para não se adiar certas cirurgias, consultas e tratamentos, onde é que deixaríamos a morrer os doentes covid? Mais ainda, quando é uma doença extremamente lenta na sua evolução e que obriga a quem cuida, alimenta e trata a se proteger pelo enorme potencial de contágio. E não se esqueçam que todos os doentes não-covid agudos ou crónicos podem, a qualquer momento, acumular à sua patologia a doença covid, que será mais frequente quanto maior for a incidência da doença/vírus na população geral.

O que vos descrevo na Medicina Intensiva é também verdade para os internamentos em geral, o Serviço de Urgência e a actividade dos centros de saúde. Em qualquer circunstância somos ética e moralmente obrigados a tratar primeiro quem está em risco de morrer primeiro, e isto prejudica largamente a nossa capacidade de tratar muitos outros doentes, porque não somos máquinas.

Compreendam de uma vez por todas o porquê do aumento da mortalidade das doenças não-covid e por que “temos de  adiar cirurgias oncológicas”.

Os danos colaterais da pandemia, estarão sempre à proporção do descontrolo da pandemia. Não é uma opção. É uma inevitabilidade.

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