As Presidenciais mais loucas de sempre

Em nome da democracia, talvez fosse de suspender o estado de emergência por um dia ou dois e fazer uma revisão constitucional relâmpago que permitisse o exercício livre e pleno do voto daqui a dois meses.

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Estamos a caminho de fechar novamente o país e também, logicamente, de “fechar” a campanha oficial para as eleições presidenciais que começa agora. Se a ordem será a de ficar em casa (tirando ir à farmácia, comprar alimentos, jornais e tabaco, e fazer o dito passeio higiénico), é da mais elementar clareza que não haverá qualquer hipótese de fazer uma verdadeira campanha eleitoral. É evidente que a democracia não fica suspensa, mas quando tantos contestaram a realização da Festa do Avante!, em Setembro, e do Congresso do PCP, em Novembro, não havia dez mil casos de infecção diários ou 118 mortos num só dia, como o de ontem.

Quando o Presidente da República recebeu os partidos, nenhum quis equacionar o adiamento das presidenciais. Ontem, Rui Rio veio repor a questão, afirmando que o PSD está disponível para “procurar encontrar um consenso”. Mas para que o consenso existisse, era preciso que o PS estivesse de acordo, e não está — José Luís Carneiro, o secretário-geral adjunto, já lembrou (tal como o PCP o fez) que não se pode mudar a Constituição em estado de emergência e enxotou a hipótese.

Portanto, vamos mesmo ter as eleições presidenciais mais obnóxias de sempre, sem campanha — a não ser nas redes sociais — e com máximos históricos de abstenção. Marcelo Rebelo de Sousa pode não ter muito a perder pelo facto de não existir campanha eleitoral, mas tem muito a perder se o confinamento travar a afluência às urnas e acabar a ser reeleito por um universo mínimo de eleitores.

É verdade que, muito à portuguesa, ninguém pensou bem no assunto até à última hora. A Comissão Nacional de Eleições defende que os idosos saiam dos lares para votar e fiquem dispensados da quarentena a que eram obrigados. A Direcção-Geral da Saúde, que emitiu recomendações para a Festa do Avante! com alguma antecedência, ainda não se pronunciou sobre as presidenciais. Jorge Torgal, especialista em saúde pública, aponta ao PÚBLICO a contradição insanável entre o apelo ao voto dos cidadãos e o apelo a que os mesmos cidadãos não saiam de casa. Em termos de saúde pública, defende Torgal, talvez fosse de equacionar o adiamento.

Mas já se percebeu que não haverá consenso — até porque a direcção do PS não tem qualquer interesse nestas presidenciais e quanto menos votos Ana Gomes e Marcelo Rebelo de Sousa tiverem, melhor para o partido do Governo, ao qual não interessa um reforço político do Presidente nem uma votação aceitável na sua militante desalinhada. Mas, em nome da democracia, talvez fosse de suspender o estado de emergência por um dia ou dois e fazer uma revisão constitucional relâmpago que permitisse o exercício livre e pleno do voto daqui a dois meses. É que o exercício livre e pleno não acontece com dez mil casos diários. Recentemente, Jacinda Ardern, da Nova Zelândia, adiou as eleições gerais por um mês por causa da covid-19 — e não consta que por lá a democracia tenha sido suspensa.

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