Combater o cancro em Portugal: para onde queremos ir?

Foi a primeira de um total de quatro conferências e marcou o arranque do projecto “Uma agenda para combater o cancro: Por todos nós, para todos nós”. Com o tema “O Plano Europeu de Combate ao Cancro – Para onde queremos ir em Portugal?”, o webinar realizado no passado dia 12 de Dezembro, resultou de uma parceria entre o Público e a MSD Portugal.

Em directo a partir do site do Público, esta conferência reuniu António Lacerda Sales, secretário de Estado Adjunto e da Saúde; Sara Cerdas, eurodeputada; António Araújo, director do Serviço de Oncologia Médica no Centro Hospitalar Universitário do Porto; e José Dinis, director do Programa para a área das doenças oncológicas.

Num debate em que ficou patente a preocupação com o caminho a percorrer para prestar os melhores cuidados aos doentes oncológicos e assegurar mais qualidade de vida, foi também transmitida e sublinhada uma mensagem de esperança associada ao Plano Europeu de Combate ao Cancro, que será apresentado no início deste ano e que terá como objectivo reduzir o peso que o cancro representa para os doentes, as suas famílias e os sistemas de saúde. “O cancro hoje já não é uma sentença de morte”, começou por referir António Lacerda Sales. “Todos os anos, cerca de 3,5 milhões de pessoas são diagnosticadas com cancro. Em Portugal, numa incidência de 3% ao ano, a mortalidade é de 2%, o que significa que há sobrevivência ainda que aumente a pressão sobre os serviços de saúde e sobre a segurança social”, sublinhou.

No que respeita ao Plano Europeu, o secretário de Estado Adjunto e da Saúde referiu que a interacção entre os países europeus é extremamente importante. “Temos a nossa estratégia que se vai inserir na Presidência Portuguesa no primeiro semestre e que está relacionada com o combate às dificuldades no acesso, a redução das cirurgias que são feitas após os tempos adequados para a sua realização, o acesso à inovação e à informação. Tudo o que esteja relacionado com o registo oncológico tem sido também uma das nossas prioridades, após a lei de 53/2017, além da aposta na formação contínua dos profissionais de saúde e de uma maior disponibilidade de recursos humanos”, afirmou, assinalando ainda a planificação adequada dos rastreios oncológicos que sofreu grandes constrangimentos devido à pandemia de Covid-19.

A eurodeputada Sara Cerdas começou por saudar a iniciativa do Público e da MSD Portugal, salientando que, embora importante, não é muito comum organizar conferências sobre políticas europeias, reforçando que o debate permitiria “perceber um pouco melhor a importância de estarmos na União Europeia (UE) e de que forma é que o Plano Europeu de Combate ao Cancro poderá dar uma resposta mais sinérgica aos 27 Estados-membros, sendo Portugal um dos beneficiários”. O combate ao cancro tem sido uma prioridade europeia desde o início da legislatura do Parlamento Europeu, iniciado a 2 de julho de 2019. “Estamos na fase de estabelecimento de um espaço europeu de dados em saúde, que é uma das premissas da nova UE para a saúde”. E, para isso, são necessárias boas redes de inovação e de investigação, bem como, a capacitação dos cidadãos para a literacia em saúde. “Ou seja, capacitar os cidadãos para tomarem decisões mais saudáveis para a sua vida e o seu bem-estar.” Este plano europeu está focado em alguns eixos principais, enunciados pela eurodeputada. São eles: prevenção, diagnóstico e detecção precoce, tratamento, qualidade de vida e reabilitação.

Todas as boas práticas de Portugal serão partilhadas de forma exaustiva por todos os Estados-membros. “O nosso Registo Nacional das Doenças Oncológicas é uma boa prática que irá ser partilhada com outros Estados-membros que ainda não a têm e toda esta experiência irá ser alavancada. Iremos trabalhar para atingir objectivos mais ambiciosos”, disse Sara Cerdas.

O papel da investigação clínica

José Dinis acrescentou que a oncologia vale 50% de toda a investigação clínica que se faz no campo da saúde. “Estamos muito bem e muito mal, em Portugal. Temos os melhores cérebros em Portugal, temos institutos potentes que dão cartas na Europa, como seja, o Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (IPATIMUP), no Porto, e o Instituto de Medicina Molecular, em Lisboa, e um aproveitamento excelente acima dos 80% dos fundos. O grande problema que temos – e que o resto da Europa também tem – é na questão de compatibilizar a investigação clínica com a restante actividade assistencial”. Cabe-nos arranjar uma estratégia nacional para resolver estes problemas, tal como o fizeram outros países europeus que se defrontaram com os mesmos desafios, referiu o médico oncologista. “Precisamos de melhorar o SNS para captar os fundos que são nossos por direito”, adiantou.

António Araújo acrescentou que é fundamental agilizar todo o processo burocrático. “Quando um promotor pretende introduzir um ensaio clínico em Portugal, tem de enfrentar uma série de burocracias até que chegue à administração do hospital e tudo isso demora tempo”, salientou. “Isto cria um entrave muito grande, pois, quando os ensaios clínicos estão a chegar a Portugal, já estão quase a terminar na Europa.” Outro dos desafios referidos diz respeito aos recursos humanos. “Temos uma grande dificuldade em recrutar coordenadores de ensaios clínicos em Portugal e todas estas questões fragilizam-nos muito em comparação com outros países do Norte da Europa.”

O foco está, actualmente, no combate à pandemia e na tentativa de minimizar a pressão sobre os serviços de saúde, sobre as unidades de internamento e de cuidados intensivos, salientou António Lacerda Sales. Ressalvou, no entanto, que “temos agora de nos focar no combate às outras doenças, como as oncológicas, e naquilo que vai ser o combate a défices estruturais que a própria pandemia destapou.” Sublinhando a enorme relevância da colaboração inter-institucional, salientou a importância de enfrentar, desburocratizar e agilizar os processos. “No Serviço Nacional de Saúde, é necessária uma política sustentada e prospectiva de recursos humanos para assegurar aquilo que são as necessidades dos nossos doentes.”

Os desafios da estratégia nacional

“Interessa-me que o programa nacional esteja equiparado ao Plano Europeu e, acima de tudo, já percebemos na Direcção Geral da Saúde que é importante termos conhecimento dos dados. Só é possível gerir com o conhecimento aprofundado e detalhado do que se passa”, explicou José Dinis. Ficou assim patente que a informação nas doenças oncológicas é prioritária. “A partir de Janeiro, espero eu, vamos ter uma ferramenta que nos permita dar, em tempo real, a monitorização dos rastreios que não está centralizada”, sublinhou.

O grande desafio europeu passa por ter as ferramentas e as mesmas “falarem umas com as outras”, avançou José Dinis, defendendo a importância de ter os dados acessíveis e centralizados. Só assim é possível perceber onde estão os doentes elegíveis para ensaios clínicos, por exemplo. “E aí podemos ter uma competitividade porque Portugal já tem todas estas ferramentas, mas o desafio é integrar a informação. Se houver normalização dos critérios e dos indicadores é mais fácil viver num espaço abrangente e de maior mobilidade.” Os desafios abrangem ainda outras realidades, como por exemplo, a do seguimento dos doentes oncológicos que sobrevivem e que tipo de vigilância passam a ter.

Sara Cerdas acrescentou que, nesta área, não é apenas Portugal que tem um longo caminho a percorrer, mas sim todos os Estados-membros da UE. Tendo sido uma das negociadoras no Parlamento Europeu acerca da digitalização em saúde, explicou que “temos vários sistemas operativos e softwares na prática clínica e que, muitas vezes, não comunicam entre si. Queremos ter os melhores resultados possíveis em todas as etapas do cancro com o menor custo possível, daí que seja fundamental esta interoperabilidade”, explicou a eurodeputada. Dentro de poucos meses, será possível ter mais respostas dentro do espaço europeu sobre os dados em saúde. “Precisamos de mais recursos financeiros, mas é preciso saber como investir e investir bem para termos o maior retorno possível e maiores ganhos em saúde.” Através de um Plano Europeu de Combate ao Cancro robusto, vai ser possível ir ao encontro de outras doenças que também necessitam de uma resposta. “Sei que há um longo caminho a percorrer, mas estou esperançosa”, salientou.

Acesso à inovação e ao tratamento

Este webinar chamou ainda à atenção para a carga substancial que o cancro representa para a família dos doentes e para a sociedade. “Maior sobrevida com melhor qualidade de vida é o nosso objectivo principal e é para isso que estamos a trabalhar e a contar com o contributo de todos”, explicou a eurodeputada.

Foi igualmente abordada a importância dos cuidados informais - cujo papel deve ser bastante valorizado na sociedade - e, também, do cancro enquanto doença crónica, uma situação cada vez mais frequente e alavancada pelo acesso à inovação. “Mesmo em doenças avançadas, conseguimos ter sobrevivências muito grandes, mas isto não invalida que o doente tenha de ir várias vezes ao hospital para fazer tratamentos crónicos, para exames de seguimento e para consultas”, referiu António Araújo reforçando uma grande preocupação com a reintegração destes doentes na sociedade.

No que respeita aos tratamentos, e admitindo que pode haver barreiras no acesso a novas terapêuticas, o médico oncologista referiu que o Serviço Nacional de Saúde disponibiliza os tratamentos mais avançados que existem a nível mundial. “Na generalidade dos casos, o doente oncológico em Portugal tem acesso ao tratamento mais adequado e avançado, ao nível do que acontece noutros países. Em algumas situações particulares, existe alguma dificuldade no acesso a medicina de ponta, mas, na generalidade, o doente deve ter consciência de que é tão bem tratado em Portugal como em qualquer outra parte do mundo”, adiantou.

José Dinis acrescentou que um dos grandes objectivos do Plano Europeu é que os cancros considerados raros tenham mais visibilidade e, para isso, é preciso implementar os programas de medicina de precisão como uma estratégia europeia. “É preciso termos uma maior organização para conseguirmos chegar lá. Para estes tipos de cancro, a aposta do Plano Europeu passa pela compilação dos dados dos 27 Estados-membros para estabelecer as chamadas redes de referência para estas patologias, para que sejam integrados em espaços de excelência para o acompanhamento e o respectivo tratamento com a partilha de boas práticas”, salientou Sara Cerdas.

O Programa Nacional das Doenças Oncológicas vai começar a ser trabalhado assim que for publicado o Plano Europeu de Combate ao Cancro. José Dinis aproveitou a ocasião para partilhar que, a partir do próximo ano, o Programa Nacional vai ter um site onde serão colocados os indicadores de saúde relacionados com a doença oncológica, “num acto de grande transparência que o SNS precisa”.

Mudar o paradigma

Mas para onde queremos ir em Portugal? Foi com esta questão que encerrámos a primeira conferência virtual e que identificámos uma missão: “queremos reduzir as desigualdades, mas também as iniquidades em saúde”, assegurou Sara Cerdas.

O médico oncologista António Araújo detalhou alguns dos objectivos que se pretendem seguir no nosso País: “Aumentar a literacia em saúde da população, aumentar a taxa de adesão aos rastreios e o número de rastreios, aumentar o acesso aos cuidados de saúde, diminuir os tempos para diagnóstico, estadiamento e início de tratamento, e, por fim, manter um nível aceitável de acesso à inovação, promover a qualidade de vida e reabilitação dos doentes, aumentar a fiabilidade dos nossos registos e o nível da investigação científica”. São metas ambiciosas que dependem de todos nós para serem atingidas. Simplificar, reorganizar e agilizar processos são aspectos a ter em consideração na construção de um plano a nível nacional.

“O que nós precisamos na saúde são estruturas paralelas ao governo que façam uma simbiose”, referiu José Dinis que defende uma mudança de paradigma para a criação de unidades clínicas integradas, para potenciar a investigação clínica em Portugal.

Sara Cerdas referiu que iremos ter um Plano Europeu de Combate ao Cancro solidário e abrangente. “Do que tenho trabalhado no Parlamento Europeu, sei que este plano vai dar resposta a muitos dos problemas que foram aqui elencados e contribuir para este processo dinâmico que é o combate ao cancro e a saúde em geral”.

O secretário de Estado Adjunto e da Saúde acrescentou que “tudo o que o país precisa, neste momento, é uma mensagem de reforço positivo, de confiança, uma onda de empenho e de defesa de todos em volta do Sistema Nacional de Saúde que conseguirá dar uma resposta universal”, reforçando a necessidade de responsabilização de todos para que consigamos obter o desejado sucesso colectivo.