Quando votar é perigoso

Votar no estrangeiro, para um português, pode muito bem ser coisa de rico. Se isto já é surreal num contexto normal, olhemos agora para isto com os olhos de quem atravessa uma pandemia.

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Francisco Romao Pereira

Se eu te dissesse que para exercer o meu direito de voto teria de pôr em risco a minha saúde, acharias que eu vivo num país de frágeis instituições e pouca cultura democrática. Então aperta o cinto e vamos descobrir as idiossincrasias deste país a que chamamos nosso.

Estou recenseado em Londres, no Reino Unido, desde 2018. Votei nas eleições legislativas por correio: recebi uma carta em casa com um boletim de voto, preenchi o boletim, enfiei-o dentro de um envelope sem identificação e coloquei esse envelope dentro de outro maior, juntamente com uma cópia do meu cartão do cidadão. Meti a carta num marco do correio, ao fundo da minha rua, e assim, gratuita e eficazmente, exerci o meu direito de voto.

Nas eleições presidenciais, contudo, a regra é diferente: não há voto postal, apenas presencial. Porquê? Honestamente, não sei. Uma explicação poderia ser a de que o artigo 121.º, n.º 3 da Constituição consagrou, para a eleição do Presidente da República, a obrigatoriedade do voto presencial. Contudo, essa obrigação é apenas para “o direito de voto no território nacional”. Na Lei Eleitoral do Presidente da República, decidiram obrigar toda a gente a votar presencialmente: mas podiam ter decidido de outra forma para quem vota no estrangeiro.

Significa isto, para mim, que nos dias 23 ou 24 de Janeiro tenho de sair de casa e dirigir-me ao consulado português em Londres, esperar na fila com outros conterrâneos, para colocar uma cruz no boletim e entregá-lo em mão ao presidente da mesa de voto. Parece simples.

Contudo, se eu vivesse numa cidade sem mesa de voto para eleições portuguesas (que, como podem imaginar, são a esmagadora maioria das cidades estrangeiras), teria de me meter no comboio e dirigir-me à mais próxima, e depois regressar. Para mim, em Londres, será hora e meia de viagem. Para outros, em cidades que ficam longe de qualquer mesa de voto, pode significar horas e horas de viagem, para lá e para cá; centenas de euros em custos de transporte. Tudo para fazer aquilo que, há um ano, nas legislativas, fizemos do conforto da nossa casa, através de um envelope enfiado num marco do correio.

Votar no estrangeiro, para um português, pode muito bem ser coisa de rico. Se isto já é surreal num contexto normal, olhemos agora para isto com os olhos de quem atravessa uma pandemia.

No Reino Unido, foi decretado confinamento obrigatório em todo o território: é proibido sair de casa a não ser em situações específicas, entre as quais (ao contrário da minha impressão inicial) votar em eleições. Este decreto tem uma razão de ser: no Reino Unido, os níveis de transmissão do vírus estão descontrolados e o governo está em pânico. E não posso ir votar nas eleições presidenciais do meu país sem arriscar uma concentração de pessoas, sem pôr em risco a minha saúde.

Votar no estrangeiro, para um português, pode muito bem ser coisa de pessoa jovem e saudável, que não tem familiares de risco e tem dinheiro para gastar. Isto é inaceitável.

Vivem no Reino Unido mais de 400 mil portugueses. Só em Londres, estão registados cerca de 225 mil. No total, em todo o mundo, são mais de dois milhões de portugueses com direito de voto, mas cujo preço de exercício é, nalguns casos, demasiado elevado.

O voto postal é, em Portugal, uma solução fácil, eficaz, testada, segura. É uma solução que não coloca em cima da mesa o problema de votar ou quebrar a lei; de votar ou arriscar a sua saúde e a dos outros; de votar ou gastar dinheiro que não se tem.

O exercício do direito de voto é o princípio da democracia. Devia ser simples, seguro, garantido. A única coisa que me deve impedir de votar é a minha vontade de não o fazer. Temos todas as condições para que assim seja, implementamos essas soluções para certas eleições, mas nem num ano em que as circunstâncias imploram por essa agilidade foi possível pensar, por um segundo, naquilo que se ia pedir aos milhões de portugueses no estrangeiro que quisessem exercer esse direito básico, fundacional, da democracia.

Para muitos de nós, nas próximas eleições presidenciais, votar será mais do que um acto de cidadania: será um acto de rebeldia, de coragem e de provocação. Costuma ser assim em países de frágeis instituições e pouca cultura democrática. Não tinha de ser assim em Portugal.

Actualização: Texto corrigido, a pedido do autor. Entre a data de escrita e a data de publicação do artigo, o Governo britânico clarificou que a participação de residentes no Reino Unido em actos eleitorais não violará as obrigações de confinamento, como foi originalmente assinalado, contemplando agora uma excepção para deslocações “where it is reasonably necessary for voting in an election or referendum”.​

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