À espera de luz no farol do mundo livre

Sabemos agora com os deprimentes ataques ao Capitólio do que são capazes de gerar as sementes de ódio e os instintos de dominação e de poder a qualquer preço cultivados por Donald Trump.

As imagens do assalto ao Capitólio, o símbolo da democracia norte-americana, são a prova do que pode acontecer quando se libertam as forças da extrema-direita.

Joe Biden terá certamente razão quando afirma que os energúmenos que participaram no ataque são uma minoria, que não representam o povo dos Estados Unidos – mas é exactamente nessa análise da realidade que está o perigo. Não é preciso mais do que um demagogo insano e irresponsável para que essa minoria extremada se julgue no direito de pôr os fundamentos da democracia em causa, que reclame para si pela força o que não consegue sob a égide da lei, ignorando sem vergonha a legitimidade das eleições, espezinhando a soberania e aviltando as mais elementares regras de respeito pelas instituições. 

Já conhecíamos esse receituário de intimidação e assalto da extrema-direita dos manuais da história do século XX ou das narrativas dos golpes gerados em sociedades iliberais com Estados instáveis ou falhados. Ver que isso pode acontecer até nos Estados Unidos é uma surpresa e um aviso. Basta que uma sociedade avançada de um país com instituições sólidas eleja um louco para que a ordem constitucional estabilizada ao longo de décadas fique sob ameaça. Basta que haja um Führer ou um duce a gerir o ódio, o ressentimento e a intolerância para que o respeito pela vontade da maioria, a legitimidade e a soberania das instituições fiquem em causa.

Sabemos agora com os deprimentes ataques ao Capitólio do que são capazes de gerar as sementes de ódio e os instintos de dominação pela força cultivados por Trump. Trump queria os seus SS ou os seus camisas-negras e encontrou-os nas margens do racismo, da exclusão dos subúrbios ou no vazio económico da América da ferrugem. Acarinhou-os e alimentou-os como uma tropa de protecção. Estimulou-os com a manipulação e a mentira, com o seu racismo e nacionalismo e deu-lhes um móbil para o crime com o negacionismo sobre os resultados eleitorais. Só será derrotado se o partido que o apoia perceber que ele não é um democrata, apenas um aspirante a ditador sem escrúpulos que os ameaça.

Pode ser esse o lado bom do assalto. O conservadorismo que não prescinde da lei e da ordem há-de ter ficado impressionado com a ilegalidade e a desordem da turba de arruaceiros que o perpetrou. A vitória de Biden e dos candidatos democratas ao Senado na Geórgia pode ajudar os cultores do Tea Party e do radicalismo a perceber que os apelos à ilegitimidade ou à sedição não dão votos. Os “trumpistas” puros e duros terão agora provavelmente mais pudor em elogiar o caudilho da baderna e da violência. O próprio já percebeu que foi longe de mais. Isolado, Trump pode acabar o seu devaneio na política da melhor forma: com a saudade que se concede às nódoas.

Nada está garantido. Quando o outrora farol do mundo livre e da democracia liberal vive dilemas com esta crueza, só temos razões para duvidar. Que essa dúvida leve ao menos os que simpatizam com a extrema-direita em Portugal e na Europa a perceber o perigo: por detrás de um programa demagógico, iliberal e populista há sempre uma besta totalitária disposta a tomar de assalto pela intimidação ou pela força o coração da democracia.

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