Dia 134: coragem para enfrentar a moda como um jogo e não como uma ditadura

Para atingir este grau de libertação é preciso que deixemos de nos importar (tanto) com o que os outros pensam de nós. Coisa que a maioria dos adolescentes é incapaz de fazer.

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@designer.sandraf

Querida Mãe,

Hoje as minhas filhas convenceram-me a navegar pelo site da Zara e quando passámos pela secção dos adultos fiquei de boca aberta. Calças à boca-de-sino?! Só podem estar a gozar comigo. Fui ver a outros sites de marcas conhecidas e lá estavam elas, expostas por todo o lado. As calças à boca-de-sino voltaram? Mas isto é brincar com a vida das pessoas!

É que, repare, na altura em que comecei a ligar minimamente a roupa estavam na moda. Aceitei. Tinha de ser… Éramos adolescentes e encaixar na matilha era uma prioridade. Lá consegui umas calças “pata de elefante”, compradas na “Baixa” (que, para mim, saloia de Sintra, equivalia a uma ida a Paris), e usei-as como era suposto. Uns anos depois a mana, mais nova mas sempre anos-luz à minha frente nestas coisas das modas — como a mãe com certeza não se esqueceu! —, desprezou as minhas magníficas calças à boca-de-sino, um trauma que explicará o facto de a partir daí contentar-me com usar sempre a roupa dela (que felizmente para a gestão do seu orçamento familiar, servia-me). E lá me fui adaptando (com muita dificuldade, confesso) a calças de corte direito com cintura baixíssima. Fui assim seguindo a moda, sempre com um significativo delay, porque ela só me emprestava a roupa depois do “pico da moda” já ter passado, passando de calças com rasgões, depois sem rasgões, os jeans a fingir desbotados, etc..

Depois tornei-me mãe, e achei que podia parar de me importar minimamente com a moda. As jardineiras, felizmente, foram sempre cool, por isso acreditei que nunca mais tinha de voltar a pensar no assunto. Até que... As minhas filhas, suponho que com a sua cumplicidade, decidiram que eu devia voltar ao mainstream, e ofereceram-me umas maravilhosas calças fofinhas de cintura alta. E sabe que mais? Adorei! Finalmente encontrei um modelo confortável e o meu plano era nunca, mas nunca mais as tirar – e olha, que sorte, até estavam na moda! Mas agora depois deste esforço todo, voltamos às boca-de-sino? Porque é que ninguém me avisou que isto dava a volta e ia parar ao mesmo sítio? Escusava de ter entrado no carrossel.

Mãe, tenho mesmo que aderir?


Ana,

Vejo que chegou a altura de te oferecer, sob a forma de herança em vida, um dos meus crachats preferidos. Tem o desenho de uma hippie e diz “What goes arround, comes arround — soon I will be in fashion again”. Ou seja, exactamente o que acabas de constatar, que isto da moda acaba sempre onde começou, e bem podias ter ficado vestida com as tuas lindas calças à boca-de-sino até hoje.

Infelizmente a consciência deste ciclo só acontece muito mais tarde, por isso nunca poderia ter evitado a tua viagem no carrossel, consola-te. Tal como tu, pronto, não tanto como tu, também eu demoro algum tempo a habituar-me a que, de repente, os vestidos pareçam feitos de cortinas como as roupas dos meninos von Trapp, da Música no Coração, ou que os mocassins passem a ser considerados feios dando lugar a umas botas de cano curto que, até ai, só tínhamos visto nos pés das bruxas (dos livros). Dito isto, desde que deixei de sentir a moda como uma ditadura, para a passar a vê-la como um jogo, até confesso que me diverte.

A questão é que para atingir este grau de libertação é preciso que deixemos de nos importar (tanto) com o que os outros pensam de nós. Coisa que a maioria dos adolescentes é incapaz de fazer. Odeiam a farda da escola, mas vestem o uniforme da/do youtuber ou adoptam religiosamente o look do manequim da montra da loja da marca preferida (que também tem modas), rezando para que nada os distinga, como tu dizes, do resto da matilha. Parece ir em contramão com o nosso esforço para que assumam a sua individualidade, e sejam capazes de não ser umas Maria-vai-com-as-outras, mas só uma amnésia profunda nos pode fazer esquecer o efeito que uns trapos podem ter na confiança com que enfrentamos o mundo. E de como, também nós, naquelas idades, precisávamos desesperadamente destes escudos.

À luz de tudo isto, até a minha tolerância para o “tem de ser daquela marca” subiu. Por isso, parece-me muito bem que os pais se recusem a gastar uma pipa de massa nuns ténis que, além do mais, vão deixar de caber dentro de meses, mas reivindico para os avós o direito a fazerem um disparate desses, desde que seja de sua livre e inteira vontade, sem chantagens mafiosas pelo meio.

É claro, Ana, que é uma forma de suborno e compra de favores, mas não nos importa. Semeamos mais uma memória, e um dia quando elas navegarem pelos sites virtuais com as suas filhas e lá virem uns ténis Vans (é assim que se escreve?) vão exclamar “Oh, lembro-me tão bem do dia em que a minha avó me comprou uns destes!”. E, lá em cima, de onde estarei a vê-las, darei um saltinho de contentamento e terei a certeza de que o dinheiro foi bem empregue. É claro que o avô do senhor da Vans, estará ainda mais feliz do que eu, mas isso agora não interessa nada.

Quanto a ti, minha querida, ficas tão bem com essas calças que a minha recomendação é que saltes – por agora – as de pata de elefante. Mais tarde, usas as da mana. Assim como assim, já estás habituada ao jet lag.


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook Instagram.

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