A literatura dos rótulos

Penso nessa leitura perdida dos rótulos e associo-a à perda de uma certa simplicidade de momentos claramente animalescos e comuns a todos os seres humanos. Como se, de repente, se tivesse extinguido um género literário precário, rudimentar e ancestral.

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Intan indiastuti/Unsplash

Janeiro arranca devagarinho e ressacado como sempre. O mês mais longo, pelintra e escuro do ano apresenta pouquíssimas qualidades. Assim de repente, só me estou a lembrar de uma: mostrar que sobrevivemos ao mês anterior. Sobreviver às festividades de Dezembro, especialmente ao nível do sistema digestivo, mas não só, trata-se de uma tarefa hercúlea.

Quando penso no tempo passado na casa de banho entre finais de Dezembro e inícios de Janeiro, vêm-me também à memória os rótulos das embalagens de champô e gel de banho, agora praticamente ignorados; sinto-me nostálgica. Recordo o quanto nos foram úteis antes dos smartphones se terem tornado uma espécie de implantes das mãos. Antes destes aparelhos, os rótulos das embalagens que estivessem mais a jeito na casa de banho serviam para nos descontrair as ideias e o esfíncter nos momentos mais ou menos aflitos, passados na solidão das quatro paredes de azulejos. Líamos e relíamos as fórmulas pró-vitaminas e perscrutávamos com bastante atenção o rol de ingredientes.

Enfim, éramos leitores inocentes e não sabíamos. Ficávamos perplexos com as palavras difíceis como, por exemplo, o antioxidante di-succinato de etilenodiamina trissódico. Mas também nos apaziguávamos quando encontrávamos num desses rótulos, por exemplo, a lendária pró-vitamina B5. Saudades desse tempo em que, de rabo nu e alçado, nos esticávamos para arrepanhar a embalagem que estivesse mais à mão, e nos satisfazíamos com a narrativa curta e disruptiva inscrita nos rótulos das embalagens de higiene íntima. Alegrávamo-nos por descobrir coisas pequenas e insignificantes. Perceber, por exemplo, que champô e gel de banho são dois produtos de composição praticamente semelhante. Constituídos por água, tensioactivos, condicionadores, espessantes, estabilizadores de espuma, conservantes e outros aditivos. Nessa altura, o tempo passado na casa de banho era mais curto porque as palavras escritas nas embalagens esgotavam-se com facilidade.

Penso nessa leitura perdida dos rótulos e associo-a à perda de uma certa simplicidade de momentos claramente animalescos e comuns a todos os seres humanos. Como se, de repente, se tivesse extinguido um género literário precário, rudimentar e ancestral.

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