Vivemos uma era de pandemias

Os vírus sempre cá estiveram, enterrados em lugares remotos onde as pessoas não interferiam. As doenças são novas porque teimamos em mexer no que está quieto, seja a floresta, os animais selvagens, ou os combustíveis fósseis.

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Robert Galbraith/Reuters

“Não mexas no que está quieto” é uma expressão muito comum no Norte do país, especialmente dirigida a crianças. Há uma idade em que os bibelôs são objectos muito tentadores, mas há que aprender bem cedo que servem para estar nas prateleiras e não se devem partir.

O aparecimento desta nossa característica básica de mexer no que está quieto deverá ser contemporânea ao início do processo de domesticação de espécies, há cerca de 12 000 anos. Apesar das múltiplas vantagens que nos trouxe este processo evolutivo, surgiram, ressurgiram e continuam a surgir diversas doenças infecciosas a partir das quais vemos nascer pandemias.

Algures entre a incansável discussão sobre o Antropoceno, decidimos ignorar que esta é também a era das pandemias. Cerca de um século antes da covid-19, tivemos a conhecida gripe espanhola, com mais de 50 milhões de mortos pelo mundo. Mais recentemente, o VIH terá morto pelo menos 37 milhões de pessoas desde a sua identificação em 1981. Nas últimas décadas, a situação tem vindo a piorar, seja com doenças novas ou reincidentes: SARS (2003), gripe A (2009), MERS (2012), ébola (2014), chikungunya (2014), zika (2015). Desta sumária referência aos nomes grandes, podemos tirar a conclusão objectiva de que estes eventos estão cada vez mais frequentes e mais perigosos. Antes deste fatídico ano de 2020, não havia motivo para alarmismo, provavelmente porque a grande maioria destas doenças afecta particularmente minorias e tem-se expressado bem longe da velha Europa. Agora, já que cá estamos todos juntos num 1984 versão covid-19, vejamos:

A grande maioria destes microrganismos chega-nos através do contacto com animais. Com a desflorestação e as alterações no uso do solo, destruímos hectares de habitats para conversão de espaços naturais em, por exemplo, terrenos agrícolas, abrindo as portas ao que é desconhecido pelo nosso sistema imunitário. Cada habitat destruído é uma roleta russa onde é impossível prever em que bala sairá algo ansioso por sobreviver e nos atormentar. Ao mesmo tempo, à medida que o planeta aquece, os animais tendem a migrar em direcção aos pólos, onde a temperatura será mais baixa. Esta aglomeração deverá aumentar o número de contactos entre espécies, criando oportunidades de transição entre hospedeiros, que invariavelmente nos inclui a nós.

Com condições climáticas adequadas muito para além daquilo que é a sua área de distribuição endémica, estas migrações trarão, por exemplo, mosquitos. Estas espécies, conhecidas pela disseminação de doenças como a malária, zika ou dengue, deverão tornar-se comuns no nosso país, à semelhança do que já se tem visto noutras regiões do mundo. Com o degelo das calotes polares, as alterações climáticas poderão ainda ser responsáveis pelo ressuscitar de vírus congelados no passado. Os vírus sempre cá estiveram, enterrados em lugares remotos onde as pessoas não interferiam. As doenças são novas porque teimamos em mexer no que está quieto, seja a floresta, os animais selvagens, ou os combustíveis fósseis.

Os riscos futuros não são fáceis de prever, mas a batalha contra as alterações climáticas tem diversas frentes. Para todas elas, e incluindo o combate às pandemias que virão, podemos continuar a lutar para reduzir as emissões de gases de efeito de estufa e limitar o aquecimento global, podemos parar com a desflorestação, investir na transição energética, proteger a biodiversidade. Temos a responsabilidade de assegurar um futuro onde ensinamos desde cedo que a natureza, à semelhança dos bibelôs dos adultos, não é para partir. É esta a mensagem que deixo para 2021: paremos de mexer no que está quieto.

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