O fim do efeito de Flynn?

É possível que as modernas tecnologias, ao colocarem todo o conhecimento do mundo ao nosso alcance, estejam, paradoxalmente, a reduzir as nossas capacidades cognitivas.

James Flynn, cientista e investigador, que se debruçou sobre o estudo da inteligência humana, faleceu no passado mês de Dezembro, na Nova Zelândia. Flynn descobriu um curioso fenómeno relacionado com a inteligência humana, que veio a ficar conhecido como o efeito de Flynn, quando constatou que o Quociente de Inteligência (QI), medido por testes padronizados, tem aumentado, de forma sistemática e significativa, ao longo do século XX.

A inteligência humana é complexa e multifacetada, exibe muitas dimensões e é dificilmente quantificável. Embora não exista uma classificação única e universalmente aceite das diferentes componentes da inteligência, é consensual que existem dimensões que são essencialmente complementares e ortogonais entre si, tais como a inteligência quantitativa, analítica, verbal, emocional, social e espacial, entre outras. Todos nós conhecemos pessoas que são muito dotadas em algumas destas dimensões mas que exibem limitações noutras. Os casos mais extremos são, talvez, os das pessoas que sofrem de savantismo (também conhecidos como idiotas-savants), que exibem competências prodigiosas em alguns aspectos (tipicamente aritméticas) mas são muito limitados noutros aspectos.

Apesar desta complexidade, têm sido feitos esforços significativos para quantificar a inteligência, através da aplicação de testes padronizados que medem algumas das suas componentes. O resultado destes testes é, geralmente, traduzido num único número, o Quociente de Inteligência, ou QI, e tem esta designação porque quantifica as competências cognitivas relativamente à média da população. Na maior parte das metodologias, é atribuído um único valor ao resultado do teste, que resulta da ponderação de diversos resultados parciais. Adopta-se, geralmente, a convenção de este valor ser processado por forma a exibir uma distribuição normal, com média 100 e desvio padrão 15. Significa isto que o adulto médio tem uma classificação de 100, em média, e que cerca de 70% da população tem uma classificação entre 85 e 115. Apenas 2% da população obtém classificações acima de 130 e apenas cerca de 1 em cada 1000 excede os 145.

Estes valores numéricos não estão intrinsecamente relacionados com as características da inteligência humana nem revelam nada de profundo acerca da mesma. Resultam apenas do tratamento estatístico dos resultados que, ao seguirem uma distribuição normal (também chamada de gaussiana) levam a uma caracterização previsível de um determinado atributo da população. Em cada ano, os resultados do teste são normalizados, fazendo com que a distribuição mantenha, ao longo dos anos, muito aproximadamente, as características de uma distribuição normal de média 100 e desvio padrão 15. Porém, é possível comparar os resultados de testes de um ano com os resultados de testes de anos anteriores, um procedimento que foi levado a cabo muitas vezes. Esta comparação, quando feita de uma forma sistemática e cuidadosa, mostra que o QI tem exibido, ao longo das décadas, um crescimento sistemático. Os resultados parecem indicar que as pessoas são, hoje, bastante mais inteligentes do que eram no princípio do século XX. É este aumento sistemático e progressivo dos resultados nos testes de inteligência que é conhecido como o efeito de Flynn.

A análise dos resultados nos testes padronizados, ao longo das décadas, primeiro levada a cabo por James Flynn mas confirmada por numerosos estudos independentes, demonstra que os resultados nos testes de inteligência têm crescido cerca de 3 pontos por década, durante o século XX. Porém, o que é impressionante nestes resultados não é tanto que a inteligência da população, tal como é medida por estes testes, aumente ao longo do tempo. O que realmente impressiona é a magnitude deste aumento. Ao longo do século XX, o valor médio nos testes aumentou cerca de 30 pontos, a nível global, e também nos Estados Unidos, onde existe um registo histórico mais extenso. Isso significa que um indivíduo médio do princípio do século XXI obteria um resultado que estaria nos primeiros 2% se fizesse um teste de inteligência no princípio do século XX. Por outras palavras, um indivíduo médio do princípio do século XXI seria superdotado, quando comparado com o indivíduo médio do princípio do século XX. Ou, de forma equivalente, o indivíduo médio do princípio do século XX seria provavelmente considerado como sofrendo de uma deficiência cognitiva, se avaliado pelos testes de hoje. Note-se que estes testes não foram projectados para avaliar conhecimentos ou cultura, mas sim para avaliar a capacidade intrínseca para resolver problemas diversos, à qual se dá a designação simplificada de “inteligência”.

Estes resultados, surpreendentes, têm feito correr muita tinta. Uma das razões para isso é que a administração e interpretação de testes de inteligência são, em si mesmas, polémicas, até porque existem variações significativas nos resultados entre diferentes segmentos da população, correlacionadas com factores como a raça, o estatuto socioeconómico e a qualidade da alimentação, entre outros. Sendo um assunto política e socialmente muito sensível, existe uma preocupação generalizada que os resultados de testes de inteligência possam vir a ser usados para fins moralmente discutíveis, um risco que é real.

Porém, grande parte da discussão centra-se na interpretação e análise dos resultados obtidos por James Flynn e por muitos outros investigadores. Em particular, continuamos sem saber se o efeito de Flynn reflecte realmente um aumento de inteligência da população ou se é apenas um efeito colateral do procedimento que é usado para medir essa mesma inteligência. Porém, é razoável argumentar, como muitos já fizeram, que as melhores condições de vida, o acesso generalizado à educação e a vida em ambientes mais estimulantes têm conduzido a um aumento generalizado e significativo da inteligência nos países mais desenvolvidos, onde os dados históricos confirmam inequivocamente a tendência.

Na última década, um significativo conjunto de estudos parece indicar que o crescimento regular do QI previsto pelo efeito de Flynn deixou de ocorrer durante as primeiras décadas do século XXI. A evidência é, ainda, preliminar, mas os resultados indicam que o aumento sistemático dos resultados nos testes de inteligência não se verificou durante o século XXI, e poderá mesmo ter-se invertido. Por um lado, isso seria algo expectável nas sociedades mais desenvolvidas (esta inversão foi mais amplamente documentada em países mais desenvolvidos), onde as condições de vida evoluíram tanto no último século que dificultam ou impedem melhorias significativas adicionais. Problemas como a falta de acesso à educação e adequada nutrição podem considerar-se integralmente resolvidos em países como a Noruega, onde a reversão da tendência foi particularmente bem documentada.

Porém, existem outras explicações mais preocupantes. É possível que, com a utilização mais intensa das novas tecnologias, as competências quantitativas e verbais que são exaustivamente testadas nos testes de inteligência possam estar efectivamente a diminuir, à medida que uma fracção cada vez maior da população lê menos, raciocina menos e reflecte menos. É possível que as modernas tecnologias, ao colocarem todo o conhecimento do mundo ao nosso alcance estejam, paradoxalmente, a reduzir as nossas capacidades cognitivas.

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