Morreu Joan Micklin Silver, que filmou a Nova Iorque judia e a crise do jornalismo

A realizadora norte-americana de filmes como Hester Street, Between the Lines ou Amor à Terceira Vista tinha 85 anos.

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Joan Micklin Silver, que filmou de forma única a Nova Iorque judia, morreu no último dia de 2020 em Manhattan, aos 85 anos, vítima de demência vascular. Hester Street, a sua primeira longa-metragem, lançada em 1975 – que não teve estreia comercial em Portugal –, foi um relativo sucesso de bilheteira e valeu uma nomeação aos Óscares para a actriz principal, Carol Kane.

Não foi fácil, porém, chegar a esse patamar. Numa altura em que havia (ainda mais) fortes entraves à entrada de mulheres na realização, ninguém queria financiar um filme de uma cineasta estreante sobre uma família de imigrantes judeus na Nova Iorque do final do século XIX, vindos, tal como os pais russos de Micklin Silver, da Europa de Leste. Considerando-a uma história de nicho, os estúdios rejeitaram esta produção filmada a preto e branco e parcialmente falada em iídiche que adaptava Yekl: A Tale of the New York Ghetto, de Abraham Cahan. Hester Street acabou por ser um filme independente, produzido pelo marido da realizadora, Raphael D. Silver, que vinha do ramo imobiliário.

Nascida em Omaha, no Nebraska, em 1935, Joan Micklin Silver mudara-se para Nova Iorque em 1967 para ser realizadora, depois de ter vivido 11 anos em Cleveland, no Ohio, a terra do marido, onde foi professora de música e escreveu textos para teatro.

Seguiu-se uma curta-metragem, Bernice Bobs Her Hair, uma adaptação de um conto de F. Scott Fitzgerald, e, depois de Hester Street, a segunda longa-metragem. Between the Lines, estreada em 1977, saía de Nova Iorque para ir até Boston mostrar o dia-a-dia dos trabalhadores de um jornal independente à beira de ser comprado por uma grande empresa, focando a crise do jornalismo que ecoa até aos dias de hoje. O elenco incluía caras que viriam a dar muitas cartas nos anos seguintes, de John Heard, com quem Micklin Silver voltou a trabalhar no seu filme seguinte, Chilly Scenes of Winter, a Marilu Henner, estrela da sitcom Taxi, passando por Jeff Goldblum, Bruno Kirby ou Joe Morton.

Depois de Chilly Scenes of Winter, passado em Salt Late City, no Utah, e centrado num homem com uma obsessão romântica por uma colega de trabalho, Micklin Silver voltou à Nova Iorque judia em Amor à Terceira Vista, uma deliciosa comédia romântica sobre uma mulher solteira que trabalha numa livraria e cuja avó contrata uma casamenteira que a tenta emparelhar com um homem que vende pickles. Com Amy Irving e Peter Riegert, que também tinha aparecido em Chilly Scenes of Winter, o filme também começou por ser rejeitado pelos estúdios por ser “demasiado étnico” – “um eufemismo para material judaico de que os executivos de Hollywood desconfiam”, disse a própria realizadora ao New York Times –, até que Steven Spielberg, que era casado com Irving, intercedeu junto de um executivo da Warner Brothers.

Além do anti-semitismo, o obituário que o New York Times dedicou à realizadora refere o sexismo com que Micklin Silver se debateu ao longo da carreira, citando uma entrevista ao American Film Institute em 1979. Nela, a cineasta explicava que tinha ouvido “coisas gritantemente sexistas” da boca de “executivos dos estúdios” quando se iniciou no cinema. Um homem terá comentado: “É muito caro montar e distribuir longas-metragens, e mulheres realizadoras são mais um problema de que não precisamos.” 

A carreira de Micklin Silver continuou até 2003, ano do telefilme Hunger Point, passando por filmes como O mais querido pelas mulheres, de 1989, ou Onde Pára a Mamã, de 1992, mas foram as suas quatro primeiras obras que fizeram a sua reputação. Têm sido redescobertas e restauradas nos últimos anos – embora não tanto em Portugal –, depois de terem sido relativamente esquecidas ao longo de décadas de escassa circulação e em que o trabalho das poucas realizadoras a trabalhar em Hollywood (e nos Estados Unidos em geral) foi posto de lado. Maya Montañez Smukler, autora do livro Liberating Hollywood, estima que na década de 1970, a da Nova Hollywood, caracterizada pela renovação do sistema de Hollywood e pela entrada de novas vozes no cinema norte-americano, só havia 16 mulheres a filmar, muitas delas já celebridades (algo que Micklin Silver não era) antes de se porem atrás de uma câmara.

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