Os italianos querem saber por onde andam as 400 esculturas que foram levadas da Vila Adriana

Projecto Atlas vai inventariar as peças que, ao longo de séculos, saíram de um dos mais espectaculares complexos arquitectónicos do mundo romano.

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A Vila Adriana é um dos sítios arqueológicos mais cenográficos de Itália Cortesia: UNESCO

O gatilho parece ter sido a venda em leilão de uma escultura de um metro e meio de altura com quase dois mil anos representando Dioniso, o deus grego associado ao vinho e à vinha, à festa e ao teatro. Encontrada na Vila Adriana em 1775, de acordo com o catálogo da Christie’s, a leiloeira que a levou à praça em Dezembro e a vendeu por 860 mil libras (965 mil euros), esta peça em mármore é uma das centenas de esculturas oriundas deste complexo construído entre 118 e 138, o período em que o imperador Adriano esteve no poder (sucedeu a Trajano em 117), que estão hoje espalhadas pelo mundo. 

Confrontado com esta transacção, o Ministério da Cultura italiano decidiu alargar o âmbito do Atlas, nome que deu ao projecto que, associado à reabertura do museu da vila, fechado desde 2014, vai fazer a cartografia completa deste sítio arqueológico com 120 hectares e vestígios de cerca de 30 edifícios, um dos mais espectaculares do mundo romano. Nos próximos anos, a equipa responsável pelos trabalhos de investigação, preservação e divulgação do património deste conjunto concebido como uma “cidade ideal” por um dos mais notáveis imperadores de Roma, vai encarregar-se, também, de inventariar todas as esculturas e outros elementos arquitectónicos decorativos que deixaram a “casa” que Adriano mandou construir para enriquecer as colecções privadas da aristocracia europeia e de alguns dos melhores museus do mundo, sobretudo ao longo da segunda metade do século XVIII. Segundo o diário espanhol ABC, são mais de 400.

Inventário completo

O objectivo do Atlas, diz Andrea Bruciati, director da Vila Adriana, numa nota publicada no site do Ministério da Cultura italiano, é fazer um levantamento exaustivo dos bens que, estando hoje dispersos por diversos acervos, pertenceram àquele sítio arqueológico composto por palácios, moradias, termas, templos, jardins, recintos para a prática desportiva e bibliotecas e, assim, compreender melhor a extensão da sua influência na arte do ocidente, sublinhando o valor universal que levou a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, na sigla inglesa) a inscrevê-lo na lista do património mundial em 1999. 

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Reunindo informação que tanto se dirigirá ao público especializado como ao visitante comum, o Atlas vai propor, de acordo com Bruciati, “um mapa das constantes da memória ocidental e dos arquétipos culturais que têm as suas raízes na Vila Adriana”. Raízes que ajudam a escrever uma “história baseada em mitos, figuras, alegorias e símbolos” que serve de bússola num universo carregado de referências que é “preciso descodificar, mas sem abdicar da emoção”. 

Bruciati e a sua equipa não querem que este inventário se limite a organizar os dados históricos, iconográficos e bibliográficos espalhados por museus, bibliotecas e arquivos, querem antes que dê origem a uma plataforma que sirva de ponto de encontro entre os representantes das diversas instituições que contam com bens oriundos da vila que Adriano sonhou e edificou na pequena cidade de Tibur (actual Tivoli), a cerca de 30 quilómetros de Roma. E querem fazer dela um instrumento útil para a circulação de informação e para a produção de conhecimento sobre a arte e a cultura no tempo deste imperador que viajou muito pelos seus domínios e que era tão apaixonado pelo mundo helénico, pela sua cultura e os seus hábitos, que até deixou crescer a barba (um costume muito grego rejeitado pelos seus antecessores). 

Uma vila especial

Lê-se a descrição da Vila Adriana no site da UNESCO, num texto em que se justifica a sua classificação como património da humanidade, e fica-se com a sensação de que, se tivesse sido construída hoje, provavelmente seria apresentada como um parque temático, com a mais-valia de ser a casa de férias de um chefe de Estado.

Adriano (76-138) concebeu-a como um espaço de retiro capaz de condensar o que de melhor as artes e as arquitecturas romana, grega e egípcia tinham para oferecer, mandando construir no recinto réplicas de edifícios que o tinham marcado durante as suas viagens. E tão empenhado estava em que tudo ficasse exactamente como planeara, que não se coibiu, sequer, de acompanhar a obra, visitando o local sempre que lhe era possível. 

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O que resta hoje deste complexo do século II basta para estimar o impacto que à data teria. E as esculturas e elementos decorativos que ainda se encontram nos seus lugares chegam para imaginar o que, entretanto, se perdeu ou, pelo menos, de lá saiu, como o Dioniso recentemente leiloado pela Christie’s.

Para melhor perceber como tantas esculturas acabaram por deixar a Vila Adriana é preciso ter em conta que esteva abandonada durante séculos depois da morte do imperador, em 138, aos 62 anos, provavelmente na sequência de um problema cardíaco (dizem os mais românticos que não terá recuperado da morte de Antínoo, um jovem muito belo que levou da Bitínia, actual Turquia, para Roma quando era ainda uma criança e que manteve sempre a seu lado – se a relação entre ambos era ou não de cariz sexual, as fontes divergem – até que morreu afogado no Nilo, aos 20 anos). 

Redescoberta em 1461, a vila viria a influenciar de forma decisiva a arte do Renascimento e do Barroco, servindo ainda de referência a muitos arquitectos modernos e contemporâneos. Passando por mãos privadas, foi sendo espoliada e o seu património disperso. Entre os que nela trabalharam, recolhendo artefactos que depois faziam chegar ao mercado britânico está Gavin Hamilton (1723-1798), pintor neoclássico e negociante de arte e antiguidades escocês que vendeu o Dioniso ao conde de Shelburne, dono de uma das mais importantes colecções de arte do século XVIII europeu.

Hamilton, que viveu os seus últimos 40 anos em Roma, era um verdadeiro caçador de tesouros à medida da época. Sendo também ele artista, movia-se num meio em que tinha acesso a coleccionadores, críticos, antiquários e arqueólogos, numa época em que os aristocratas ingleses competiam entre si por esculturas clássicas e obras dos mestres da pintura antiga (foi Hamilton, recorde-se, quem em 1785 fez chegar a Inglaterra A Virgem dos Rochedos, de Leonardo da Vinci, que hoje está na National Gallery de Londres). 

A Vila Adriana só voltou para as mãos do Estado italiano em 1870, sendo da década de 1950 a maior e mais ambiciosa campanha de escavações. Hoje um dos sítios arqueológicos mais visitados de Itália é também um dos mais estudados e bem preservados, graças ao apoio da União Europeia (desde 1996) e aos fundos da Lotaria italiana. Com o projecto Atlas é de esperar, diz o director da vila, que muito mais se venha a descobrir sobre a “cidade ideal” de um dos mais extraordinários e controversos imperadores romanos, um homem culto que a história e a ficção eternizaram.

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