Numa unidade de corte e costura, três modos de voltar a trabalhar depois dos 45 anos

Quando se viu sem trabalho, Adélia foi acabar o curso de Economia. Nesta segunda vida, começou a trabalhar numa agência de emprego em Santa Maria da Feira, que ajudou Sérgio a abrir uma pequena unidade de corte e costura, que deu emprego a Maria do Carmo e a Piedade. Segundo capítulo de uma série sobre inserção laboral

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Adélia Antunes conhece a realidade que lhe chega à Agência Local em Prol do Emprego, em Santa Maria da Feira. Sabe que é “difícil recomeçar”, sobretudo depois de ultrapassada a barreira dos 45 anos. Recomenda que se faça o que fez quando o mundo dela ruiu. “Olhei para mim, para o que sabia fazer, para o que queria do futuro.”

Não terminara a licenciatura em Economia. Tivera os três filhos um a seguir ao outro e começara a trabalhar com o marido na empresa antes criada por ele no sector do calçado. O negócio progredira. Afunilara para responder aos imensos pedidos de um grande grupo. De repente, o grupo decidiu mudar os meios de produção para a China. “Tentámos encontrar clientes alternativos, mas não deu.”

Ainda andou um ano a tentar vender equipamento, a cobrar dívida, desejosa de ressarcir trabalhadores e recomeçar, mas não logrou acordo com todos. A insolvência obrigou-a a mudar de vida. Sempre desejara concluir a licenciatura. “Era o momento certo.” O filho mais velho frequentava o curso. “Tivemos algumas aulas em conjunto. Ele ajudou-me em alguns exames.” Outro ano passou.

Finda aquela tarefa, embora com actividade aberta para consultoria, começou a sentir o peso dos desempregados de longa duração com mais de 45 anos. O mesmo que identifica entre muitas pessoas que agora a procuram na Agência Local em Prol do Emprego, acção do projecto Direitos & Desafios promovido em 2006 pela Câmara de Santa Maria da Feira e coordenado pela Casa dos Choupos – Cooperativa Multissectorial de Solidariedade Social. “Sentem que falharam, que não são capazes, que já passou o tempo delas, que ninguém lhes dá uma oportunidade.” Lembra-se de andar na rua, ver outros a trabalhar e pensar: “Quando vou voltar a ter uma oportunidade?” Lembra-se de entrar nas instalações de um banco e pensar: “Eu podia estar desse lado”. “Tenho esse sentimento muito presente e acho que isso é útil para entender os outros.”

Percebe que há que agir depressa, antes que as pessoas se sintam desligadas, antes que se afundem. “Muitas chegam até nós com a auto-estima em baixo”, sublinha a técnica. Algumas entraram em estados depressivos. Não vislumbram qualquer futuro. “À medida que vamos trabalhando com elas, vão ganhando esperança. Algumas descobrem que têm competências que nem imaginavam, voltam a acreditar no seu potencial.”

Naquela altura, no seu currículo cabiam 20 anos de directora financeira. “Era muito desgastante. Tirava-me o sono. Não queria voltar a ter tanta responsabilidade.” Nem o ambiente era propício. Uma insolvência cria estigma, mais ainda em terras pequenas. Sem contar, encontrou a sua vocação: “ajudar pessoas que precisavam de criar o seu emprego, mas não têm os conhecimentos que eu tenho”. Como Sérgio Correia, que lhe bateu à porta em 2016.

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Um primo como garantia 

Sérgio Correia desdobrara-se em contactos de emprego. Ouvira que sim, que não, que talvez noutra altura. “A questão era a idade. Hoje em dia coloca-se muito a questão da idade.” Ia nos 52 anos. Penitenciou-se pela opção que tomara anos antes. “Foi mesmo um risco.”

Quando deixara de trabalhar na fábrica do pai, abrira uma pequena unidade de controlo de qualidade, em Santa Maria da Feira. Empregava seis pessoas, sem contar com ele e a mulher. Desafiaram-no a ir para Castelo de Paiva gerir uma unidade de corte e costura. “Uma coisa é tomar conta de seis ou sete pessoas e outra é tomar conta de 40. A proposta era muito boa. Arrisquei. Estava convencido de que ia finalizar a minha vida de trabalho ali, mas não.”

A mulher também ficara sem emprego. Trabalhava com ele. Ao fechar aquela unidade, a empresa ainda lhe oferecera a oportunidade de trabalhar numa outra, em São Martinho do Campo, Vizela. Experimentou, mas São Martinho do Campo era demasiado longe de Santa Maria da Feira. Uns 70 quilómetros para cada lado. “Não queriam suportar os custos da deslocação.”

De um momento para outro, despertava às 6h, tomava um banho, como se fosse trabalhar, mas à sua frente tinha dias vazios. A reforma ainda está longe. A filha ainda estava a estudar, ainda precisava dele e da mãe. “Não podia ficar em casa. Não era com o fundo desemprego que ia fazer a minha vida.” Começou a pensar na possibilidade de abrir uma pequena fábrica.

Adélia Antunes já o apoiara quando quisera prestar serviços de controlo de qualidade. Ouviu-o falar em relançar-se como prestador de serviços de corte e costura – há empresas que fazem o sapato do princípio ao fim, mas recorrem a prestadores de serviços para aquela fase, que requer muito mais mão-de-obra.

Além de ouvir, compete-lhe prestar uma orientação individualizada. O Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) tem programas específicos de apoio ao próprio emprego. Sérgio podia pedir para antecipar o pagamento das prestações de desemprego, aceder a uma linha de crédito com taxa de juro bonificada, receber um apoio por cada posto de trabalho criado. Mas precisava de um projecto consistente.

Ajudou-o a delinear o plano de negócios. “Não fazemos os projectos para os promotores. Fazemos em colaboração. Têm de estar envolvidos, de frequentar formação, de ir para o terreno, de procurar informação, de desenvolver contactos”, descreve. “Tudo isso é útil para perceber se estão no caminho certo. Alguns desistem. Percebem que não têm perfil ou que não reúnem as condições.”

Sérgio Correia possuía o que era preciso. Conhece bem a indústria. “Já nasci no calçado”, diz ele. Um primo, que tem uma grande fábrica, revelou-se perfeito para a ocasião. “Garantiu-me trabalho. Isso deu-me força. Acho que 90% da minha força partiu dele. Ele dá-me 80% do trabalho. Alguns equipamentos que tenho aqui são dele. Estamos neste ramo, mas é preciso ter conhecimentos. Se não tiver quem lhe possa dar serviço é muito complicado.”

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Doze gaspeadeiras

A empresa, que funciona desde 2017, chama-se Charme Neutro. O nome surgiu numa conversa com a mulher e a filha. “Tens de ter uma firma com charme. Tem de ser especial”, diziam-lhe. Funciona num espaço amplo, no rés-do-chão de um prédio novo e pintado de branco. Emprega doze gaspeadeiras, isto é, costureiras do calçado. Ficam onze sentadas, cada qual com uma máquina, a cravar, a rentear, a apontar, a riscar, a meter rivetes (botões rápidos). A mulher, Margarida, encabeça a linha. “Ela gere. Eu estou por trás. Vou buscar o produto, preparo-o, coloco-o na linha. Verifico cada peça. Não sai nada daqui sem passar pelas minhas mãos.”

 Entre as mulheres que foi buscar ao fundo de desemprego está Piedade Ramalho, então com 47 anos, hoje com 50. Levava “um ano e pico” em casa, sem emprego. Desde a adolescência, trabalhara em várias fábricas de calçado. Na última, estivera 20 anos. “As coisas começaram a correr mal e fechou, e a gente teve de se desenrascar”, comenta, com pressa de voltar à linha. “Apareceu para outros lados, mas era longe. Estava a ver se arranjava perto.”

Maria do Carmo Freitas, um ano mais nova, também não foi além do 6º ano de escolaridade e sempre trabalhou em fábricas de calçado. “Eu, por norma, quando vou ao fundo de desemprego, tenho sempre cartas a chegar a casa para ir para um lado ou outro”, esclarece. “Há falta de gaspeadeiras. Eles começam a pedir. Quando é para longe é que digo que não. Não compensa.”

Sobre a idade, que dizer? A idade certa parece demasiado curta. Há quem não queira contratar pessoas mais velhas, a pensar nas mazelas que lhes vão chegando ou na destreza que vão perdendo. Ao mesmo tempo, observa Carmo, “os patrões querem gente que tenha experiência, que chegue e faça”. “As pessoas mais novas têm de ter um tempo de aprendizagem, como nós tivemos.” Os empregadores não gostam de perder esse tempo. Elas também não lhe parecem muito interessadas em aprender a gaspear à mão ou à máquina. “Acho que não há pessoas novas a querer ir para o calçado. Se calhar não encaram isto como uma profissão muito especial, não é? Acho que há certas profissões que as pessoas não valorizam muito.”

A indústria mudou muito com os avanços tecnológicos das últimas décadas. “Já se trabalhava com algumas máquinas, mas não era o que é hoje”, observa Sérgio. “Já não é preciso tantas pessoas para trabalhar, como antes.” Também é outra a exigência. “Para levar o barco para a frente tem de se saber gerir. Tem de se saber estar com as pessoas em todos os momentos. Tento ser cordial, não entrar em conflito. Havendo um problema, tento resolver.”

A pandemia deixa-o muito apreensivo. No final de Novembro, ainda não tinha chegado a última parcela de apoio do IEFP que devia ter chegado em Junho. “A tesouraria não tem verba para liquidar”, queixava-se. “Sei que estamos a passar uma fase crítica, mas fiz um investimento e estou a cumprir o acordado. O Estado tem de ajudar as pequenas empresas. Nós vivemos do nosso trabalho.”

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O vírus a retrair o mercado

Já antes o sector se ressentia da retracção do consumo, do aumento das vendas online, da quebra na cadeia a retalho, da viragem nas tendências de moda do calçado clássico para o desportivo. A pandemia de covid-19 reduziu ao mínimo as festas e outros eventos que reclamam formalidade, o que não podia deixar de afectar uma indústria especializada em sapatos de couro de alta qualidade. Algumas empresas passaram a fazer calçado mais confortável​​, mas as exportações estão a cair – entre Janeiro e Agosto caíram cerca de 17% em relação ao mesmo período do ano passado.

Para já, vai havendo trabalho na pequena unidade de corte e costura que Sérgio Correia montou, mas o receio cresce. O seu grande cliente produz calçado para exportação. “Os clientes já não querem tanto artigo. As lojas estão fechadas.” E o vírus, em qualquer instante, pode bater à porta.

Em Novembro, teve quatro funcionárias em casa. O marido de uma contraíra o vírus e passara-lho. Outras três, que com ela conviviam à hora do almoço, ficaram em isolamento profiláctico. Mesmo sem elas, os prazos tinham de ser cumpridos e o trabalho bem feito. “Temos todos de fazer esforços”, admitia. “Temos de conciliar. Uma pessoa que fazia uma coisa está a fazer duas.”

Adélia Antunes continua a acompanhar o empresário e o sector. “Ele simplifica, não complica. Foi tendo bons resultados naquilo a que se propôs. Apesar das dificuldades e das crises, este é um sector que tem sabido reconverter-se, dar a volta.”

Vai nos 60 anos. Os três filhos já estão na casa dos 30. Parece que o desaire foi noutra vida. “A minha tendência é olhar em frente. O que senti mais quando entrei nesta área foi sede de conhecimento. Era tudo novo. Trabalhei muito na área empresarial, mas isto é a área social. Não estou num trabalho competitivo. Estou a apoiar pessoas que precisam. Por isso isto preenche-me tanto.”

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