O homem não deixou a cidade

Os artistas que se permitem enfeitiçar pelos outros, estão mais próximos de exercer o fascínio. Bem para além do fado, Carlos do Carmo era a voz da poesia de Ary, o “crooner” que se transportava a Sinatra, o idealista que nos entregava Brel.

A beleza da criação é poder colar-se ao ser sensível nas suas mais diversas faces e momentos da vida. Por vezes, é uma questão de segundos e estamos lá, num ápice. Naquele momento específico em que passamos do “doom” para o fado, quando tanto têm em comum se vão lancinantes na vertigem de querer tocar na alma, assim, aos arranhões. Ou quando fazemos a viagem do fado para o cantor de charme que, directamente do conforto do sofá, nos tinge de flores num deserto afectivo.

Carlos do Carmo, fadista, tinha tudo isto para nos dar e fê-lo com o seu toque exclusivo de singularidade e génio. Os fadistas contam-se pelos dedos mas há destino dentro de todos nós, tanto fado por descobrir. Carlos do Carmo, mestre para os homens e mulheres do fado, foi um companheiro de viagem para aqueles que o sentem sem o poder cantar. Companheiro de vida. É por vezes, quando toca mais fundo.

É sempre o “Play it again, Sam”. Os artistas que se permitem enfeitiçar pelos outros, estão mais próximos de exercer o fascínio. Bem para além do fado, Carlos do Carmo era a voz da poesia de Ary, o “crooner” que se transportava a Sinatra, o idealista que nos entregava Brel. Com Um Homem na Cidade como expoente máximo de obra, ficam outras tantas canções suspensas na história, escritas e cantadas, por vezes só momentos, no tempo das noites de fado, na Estrela da Tarde ou nas manhãs de nevoeiro. De algumas ficaram registos, de outras, vivem memórias.

Quando tinha não muito mais do que três anos, os meus pais viajaram a Lisboa e levavam uma missão implícita: desejavam aproveitar para ouvir Carlos do Carmo cantar. Estavam comigo, sozinhos, tinham que me levar como fosse, para onde fosse. Julgo ter ido ao O Faia, a casa de fados que, na altura, Carlos do Carmo geria e que já lhe vinha pela mão da mãe, a fadista Lucília do Carmo. Era noite e era tarde, sei que acabei por adormecer no que me recordo serem confortáveis sofás para a minha idade. Perto, mas que ainda hoje recordo como estando ao longe, um homem embalava-me misticamente, uma voz, como uma aparição.

É das minhas primeiras memórias de infância. Depois, esse homem acompanhou-me a vida e fez-me suster a respiração, tantas vezes, enquanto cantava. Agora, foi diferente. Fez-me engolir em seco. O fado a ser fatalista ao primeiro dia do novo ano. Que esse derradeiro novo disco, meio assombrado pelo parto, venha finalmente cá para fora. O homem não deixou a cidade.

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