Os lapsos sob a suspeita da mentira

Para acreditarmos que houve apenas incompetência, ligeireza ou negligência pura e dura é preciso que nos expliquem sem margem para dúvidas como se pôde fabricar falsidades tão primárias e tão facilmente verificáveis num documento tão sensível

Ao enviar uma carta ao Conselho Europeu com referências erradas sobre o currículo de um magistrado que escolhera para integrar a Procuradoria Europeia, o Governo cometeu um erro grave. Mas, como esses erros serviram para o Governo impor ao Conselho o nome de José Guerra em detrimento de Ana Mendes de Almeida, a escolhida por um painel de especialistas independentes, os erros legitimam uma suspeita de manipulação. Que sentido faz falar em “erros” quando nessa carta a uma alta instância europeia o Ministério da Justiça designa José Guerra como procurador-geral adjunto sem que ele o tivesse sido de facto? Que numa missiva com tanta sensibilidade política se referisse o magistrado como investigador de um processo no qual só apareceu no julgamento? Que o tivesse indicado como ex-dirigente do “maior departamento nacional no âmbito da criminalidade económico-financeira” sem que José Guerra jamais o tivesse sido? Note-se a subtileza: todos os erros servem para melhorar o perfil de José Guerra.

O Ministério da Justiça admite “lapsos”, mas garante que fez tudo com “boa fé”. Não chega. Para acreditarmos que houve apenas incompetência, ligeireza ou negligência pura e dura é preciso que nos expliquem sem margem para dúvidas como se pôde fabricar falsidades tão primárias e tão facilmente verificáveis num documento tão sensível. Até lá, é legítimo pensar que tudo não passou de uma intenção de melhorar um currículo e, dessa forma, conceder à ministra Francisca Van Dunem mais argumentos para justificar aos seus pares europeus as razões que a levaram a recusar a indicação do painel de especialistas. Até que essas explicações sejam dadas, a ministra fica exposta a uma fragilidade política insustentável – e José Guerra, um magistrado competente e consagrado, arrisca-se a ser arrastado para a mesma condição na Procuradoria Europeia.

Se até aqui tanto era possível defender que o Governo deveria ter acolhido a indicação da comissão técnica independente, como aceitar a bondade dos seus argumentos para a recusar, esta carta obriga-nos a rever toda a história. Mesmo que não esteja em causa a competência de José Guerra, é impossível não o associar a uma ingerência política do Governo, que não olhou a meios para atingir os seus fins; mesmo que o currículo de Ana Mendes de Almeida seja menos consistente, é legítimo indagar sobre se o seu envolvimento em processos complicados para o Governo não explica o denodo e os artifícios que o Governo aplicou para a travar. Quando os lapsos acontecem no contexto de uma vontade obstinada para chegar a qualquer lado, deixam de ser simples lapsos e podem ser o que, hoje, perante tanta opacidade, parecem ser: actos intencionais.

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