Fim de ano em dois tons

A propósito de um grande empresário chamado Alfredo da Silva, Pedro Passos Coelho lembrou-nos que era um grande político. O extraordinário é ter que ter sido ele a fazê-lo.

1. Apetece mandar um aviso de navegação à direita, ou a grande parte dela. Viria bem a propósito do coro de reacções elogiosas à intervenção de Pedro Passos Coelho na homenagem a Alfredo da Silva. Não integrei o coro, as palavras do ex-primeiro-ministro em nada me surpreenderam: a assinatura que deixou no país – horror ao facilitismo da falsa ilusão, horror ao populismo, cabeça arrumada, prioridades firmes, resiliência, grande sentido institucional – nunca me permitiria esperar outra coisa.

Passos Coelho faz parte do exíguo grupo de políticos de quem é sempre preciso fazer caso. Não é muito comum e em Portugal ainda menos. Mas desta vez fez-se mais do que “caso” e não sei se é boa ideia – é péssima – fazer “caso” quase sebastianisticamente. Ou assim me pareceu. Percebe-se, é verdade, o bom eco de tais reacções, traduzidas no alívio de ouvir uma crítica bem fundamentada ao Governo; na esperança do fim da orfandade; na fé num regresso ou mesmo até na (duvidosa) certeza desse regresso. Mas o que esse eco vindo de algumas moradas da direita já não consegue esconder é – portuguesmente – a genética nostalgia por um salvífico salvador que tudo salve. Ou disfarçar um “estado de espera” – conformado, passivo, indolente, improfícuo – por um “procurador politico”. Um “alguém” – D. Sebastião? – que se substituísse aos trabalhos políticos dos “descontentes” habitantes do centro e da direita, evitando-lhes o esforço de operarem eles próprios e por eles próprios uma inversão de marcha.

Se bem se vir as coisas – era aqui que eu queria chegar –, não foi porém senão isso o que Passos Coelho fez agora: substituir-se aos descontentes. Onde estão, desde os últimos cinco ou seis anos, os oficiantes da coligação PSD/CDS que ninguém os viu a cuidar da herança? Porque se remeteram os herdeiros do legado a um incompreensível quase disfarce, deixando sem voz nem representação política quem afinal os premiou nas urnas em 2015? Que aconteceu à memória colectiva de um vasto lote de sociais-democratas que corresponderam ao que Passos Coelho contava deles naqueles anos espinhosos?

Consciente da anemia envergonhada que desde então se eterniza no PSD (e, em boa parte, no CDS) quanto à sua governação, o espanto – indignado? – do ex-primeiro ministro deve ter subido de grau. Havia por onde escolher: desde a quase permanente desresponsabilização do Governo por erros e falhas invariavelmente remetidas para um oportuno “passismo”, sem que do “passismo” ninguém se amotinasse, até aos alunos que recentemente se estatelaram em Matemática por “culpa” de Nuno Crato, a escolha era farta e patrocinava a indignação. Saindo do seu audível silêncio, Passos Coelho fez o que ninguém fez por ele: reagiu. Não precisou de levantar o tom de voz nem das suas inoperantes tropas para radiografar doenças e expor algumas chagas do país, mostrando como poderia ser de outro modo.

A propósito de um grande empresário chamado Alfredo da Silva, Pedro Passos Coelho lembrou-nos que era um grande político. O extraordinário é ter que ter sido ele a fazê-lo.

2. Deixei de lado os insultos soezes ao ex-líder do PSD por parte dos familiares da ex-“geringonça” – a narrativa passista feita pelas esquerdas está já fora de prazo. Nem me atardei no verbo rasca de jovens que, apesar das suas responsabilidades políticas, jamais perceberão que fazer política exclui a indignidade. Interessou-me mais reflectir sobre aqueles a quem de certa forma chamo “os meus” e sobre a sua manifesta preferência por delegar a política num “procurador” em vez de suar politicamente pelo país. E basta atender à propensão para permanentemente culparem apenas a actual direcção do PSD pelo estado da arte nesta área política, para perceber as omissões próprias.

3. Para que fique claro: a paisagem política mudou. As moradas partidárias que tínhamos como portos seguros e talvez até realidades imutáveis deixaram de ser uma coisa e outra; as regras do jogo político alteraram-se, ganhar eleições legislativas deixou definitivamente de ser linear. E há hoje mais direitas. Saber tudo isto como sei em nada colide, porém, com o que acima escrevi. Torna apenas mais urgente perceber de uma vez por todas que jamais haverá mudança de cenário político à direita sem que ela parta do PSD: fomentada, produzida e liderada por ele. E, como tal, há que pensar e agir em conformidade com esse primeiro “mandamento” (sim, é de um mandamento que se trata).

Não será para já, nem para este ano, não há sequer data. Mas ir treinando alguns exercícios será certamente mais útil politicamente do que o mero elogio a Passos Coelho em alguns salões lisboetas ou nas páginas de dois ou três jornais. Um elogio político feito em vida a alguém reclama propósito útil. Não é de borla. E com seis anos de atraso, ainda o é menos.

4. Em fim de ano vigiado, pequena nota sobre a compaixão: as imagens de milhares de camionistas bloqueados em Dover num cenário de quase ficção científica carimbaram um ano desgraçado de dureza e incerteza. De tão descarnadas logo me acudiram mil outras, que, embora de natureza e significado tão distintos que impedem a comparação, possuem a uni-las o tracejado da incompaixão. Dos cachos de emigrantes a forçar o portão da terra nunca prometida, aos mortos sem rosto da covid debitados monocordicamente pelas televisões à hora do jantar, passando pelo estrangeiro assassinado por portugueses ao serviço do Estado, percebemos que a compaixão já não se oferece, nem se pratica. Não ocorre, caiu em desuso.

Quem eram aqueles mortos encaixados em percentagens? Quem lhes acudiu ou afagou? Como se chamavam, com quem morreram? Não interessa, abastecem as estatísticas e as estatísticas dispensam sentimentos. Durante longos meses a infâmia cometida no aeroporto de Lisboa foi politicamente escondida numa cave obscura. O medo das consequências políticas sobrepôs-se indecentemente à compaixão. A seguir – e bem – procuraram-se culpados, exigiram-se demissões, denunciaram-se anomalias e anormalidades na arena dos media. Mas lá longe, a família ucraniana sobrevivia na incompaixão: sem um gesto, uma palavra, um euro. E quando houve foi exclusivamente para salvar faces, ministros e governos.

É difícil compreender o que sob o manto do nosso mudo consentimento tornou o mundo tão incapaz de consolo. A normalização do inumano nas nossas “desenvolvidas” sociedades? O triunfo do individualismo, a morte do sagrado?

Quando percebo que não acho resposta, recordo que o Papa Francisco nos lembrou um dia que “a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar”. Foi em Lampedusa, nos idos de 2013 quando descobrimos que a misericórdia e a compaixão iriam ser os dois mais fortes faróis na viagem pastoral deste Papa. Detesto a lamúria piedosa esperando que ninguém confunda estas linhas com ela, nem muito menos as escrevo por estarmos no Natal, a compaixão não tem estações do ano.

Mas não posso deixar de me interrogar sobre quem se terá verdadeiramente impressionado com os milhares de mortos “estatísticos” dos nossos lares e hospitais; sentido compaixão pelo cidadão ucraniano morto ao pontapé por portugueses fardados, partilhado um pouco da aflição dos nossos camionistas capturados pelo desamparo numa auto-estrada europeia.

Mas talvez as lágrimas pelo crepúsculo onde vivemos também já tenham caído em desuso.

P.S.: Com fé na ciência e uma imensa gratidão aos nossos médicos e sanitários, desejo ao leitor um Vinte e Um mais esperançoso e luminoso.

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