Florestas e recursos hídricos: uma relação de dependência mútua sob ameaça crescente

Enquanto espaços privilegiados de biodiversidade, as florestas exercem uma função reguladora dos recursos hídricos - e estes ressentem-se por qualquer alteração, acidental ou planeada, da bacia hidrográfica. Rui Cortes, investigador da UTAD, fala de “picos de cheias mais intensos” e agravamento de “stress hídrico no Verão”, entre outras tendências preocupantes.

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Miguel Manso

Do vasto conjunto de serviços providenciado pela floresta para a vida e actividades humanas, aqueles que resultam da interacção com os recursos hídricos são muitas vezes relegados para segundo plano, passando despercebidos ao cidadão comum. No entanto, a ligação intrínseca entre processos, juntamente com as políticas de gestão florestal e actuais dinâmicas climáticas – estas muitas vezes apontadas como facilitadoras de fogos florestais –, podem, num futuro próximo, resultar na ocorrência mais rotineira de episódios graves como seca ou cheias, mas também perturbações ao nível da qualidade da água utilizada no abastecimento público ou até no tempo de vida útil das barragens.

Em entrevista ao PÚBLICO, o engenheiro florestal e investigador da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro Rui Cortes destaca a “completa dependência dos recursos hídricos”, especialmente as águas superficiais (como os cursos de água), face às bacias hidrográficas e respectivas composições. “Se a ocupação da bacia hidrográfica for fundamentalmente florestal, as características químicas dos recursos vão reflecti-lo.” Como tal, quaisquer tentativas de reconversão do território para diferentes usos, tais como a agricultura, configurarão alterações profundas ao nível das propriedades físico-químicas dos lençóis freáticos, com consequências ecológicas substanciais, quer ao nível da flora quer ao nível da fauna.

Seguindo a mesma linha, o especialista defende que qualquer transformação às estruturas destes territórios, seja através de episódios imprevisíveis (como incêndios) ou de decisões premeditadas (como cortes rasos), terá consequência nos caudais, com variações durante as diversas estações. “Perante uma situação de destruição da floresta, os períodos [invernais] serão marcados por picos de cheias mais intensos, os quais se vão traduzir em fenómenos de erosão muito acentuados. Por outro lado, a floresta vai criar uma grande infiltração de água no solo, permitindo o abastecimento dos aquíferos, pelo que vamos assistir, no Verão, a uma tendência para os caudais serem muito mais reduzidos.”

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O investigador Rui Cortes estabelece uma “relação próxima” entre os episódios de cheias registados nas cidades banhadas pelo rio Mondego, em 2019, e os incêndios que os precederam. nelson garrido

Erosão das bacias hidrográficas

As consequências, que já se começam a fazer sentir, são preocupantes. O alargamento do leito de cheias representa uma ameaça às populações que habitam nas proximidades de linhas de água ou em zonas mais susceptíveis a fenómenos de erosão. Rui Cortes estabelece mesmo uma “relação próxima” entre os episódios de cheias e deslizamento de terras registados na Madeira, em 2010, e nas cidades banhadas pelo rio Mondego, em 2019, e os incêndios que os precederam. “Essas situações que afectaram as zonas urbanas tiveram incêndios a antecedê-las e, como consequência do Inverno, houve um acréscimo do caudal, resultante do escoamento superficial.”

No Verão, a tendência será, como referido, oposta. “Haverá escassez de água, água essa que se vai apresentar como sendo de má qualidade”, revela o engenheiro. A presença em excesso de nutrientes como azoto e fósforo – que propiciam o aparecimento de geno-bactérias – apresenta-se como um dos principais entraves à utilização da água para fins essenciais. Através de investigação desenvolvida na UTAD, Rui Cortes e a sua equipa têm identificado e comprovado que, no norte do país, “a entrada de fósforo resulta significativamente do transporte do solo para os cursos de água, os sedimentos, os quais têm absorvido as partículas do elemento químico e conduzem à eutrofização [crescimento excessivo de plantas aquáticas] do meio aquático” e afectam a utilização dos cursos.

O abastecimento público, devido aos critérios de qualidade mais rigorosos, será a primeira forma de aproveitamento dos recursos hídricos a ficar comprometida, juntamente com o uso de recreio com contacto directo, obrigando a processos de tratamentos “mais intensos e dispendiosos”.

Outro fenómeno com consequências imediatas para a população e que decorre da ligação entre a floresta e os recursos hídricos é a erosão nas bacias hidrográficas, com impacto no nível de qualidade dos solos – leia-se empobrecimento. “Vamos ter uma desertificação das áreas, áreas previamente florestadas, como resultado dessa mesma erosão e pelo facto de termos mais escoamento superficial em detrimento da infiltração”, resume Rui Cortes. A captação de aquíferos também sofrerá as consequências da erosão devido às variações nos caudais das principais linhas de água e na deterioração da sua qualidade.

A ameaça dos incêndios florestais

Devido à forte relação de dependência que a actividade humana tem face aos recursos hídricos e à influência que a floresta exerce sobre estes, a gestão florestal assume-se como uma tarefa de importância nuclear para o país a curto, médio e longo prazo. No entanto, as conclusões que emanam dos últimos inventários florestais não constituem motivos de esperança. O “aumento da presença do eucalipto”, espécie com elevada auto-transpiração, tem como “efeito mais directo, a nível dos aquíferos, a criação de défices hídricos”. A predominância desta monocultura resulta, segundo o investigador, em florestas mais frágeis e, consequentemente, com maior risco de incêndios – que, quando acontecem, tendem a ser de maior dimensão e com maior impacto na erosão e nos recursos hídricos.

De facto, os incêndios florestais representam outra das grandes ameaças para os recursos hídricos, tanto no que concerne à quantidade como à qualidade. Como consequência destes, são recorrentes os processos de lixiviação dos nutrientes e transporte de sedimentos para cursos de água, efeitos visíveis sobretudo nas bacias hidrográficas do norte e centro do país, onde a mancha florestal é maior, e em cursos de água de menor dimensão localizados em zonas montanhosas. “São muito significativos os efeitos resultantes e, portanto, as consequências ao nível do aumento de caudais, nos efeitos de erosão que ocorrem especialmente durante o Inverno e ao nível das situações de stress hídrico durante o Verão.”

As alterações climáticas também têm contribuído para o agravar da situação, especialmente nos territórios com feição mediterrânea. Os “ciclos de seca extrema” que têm afectado o Alentejo ao longo dos “últimos quatro anos” e com tendência a repetir-se são especialmente gravosos para os montados de sobro e azinho. Devido ao aparecimento de doenças é vulgar, segundo Rui Cortes, percorremos o território alentejano e “vermos poucas árvores com copa”. “As doenças têm originado uma diminuição muito grande da produtividade desta floresta que é uma floresta aberta, mas que tem uma enorme importância ao nível da conservação de nutrientes e do solo, por isso, é um dos aspectos mais visíveis das alterações climáticas”, aclara.

Impacto no tempo de vida útil das barragens

Uma última consequência das actuais dinâmicas resultantes da ligação intrínseca entre a floresta, os fogos que nela acontecem e os recursos hídricos tem vindo a ser estudada por Rui Cortes e a sua equipa: a diminuição do tempo útil de vida das barragens como consequência do aumento de sedimentos transportados ao longo das linhas de água. “O que nós fizemos foi, ao nível da bacia hidrográfica do Douro, foi ver as implicações que os fogos florestais tinham ao nível dos principais afluentes do Douro, quais as zonas onde existia maior acumulação desses mesmos sedimentos, ou seja, onde que se colocam os problemas sobre o tempo de vida das barragens, o que pode vir a ter reflexos nos cursos de água.”

Os investigadores têm acompanhado os trabalhos feitos nas barragens da EDP, nomeadamente os de limpeza de sedimentos, os quais só são viáveis em albufeiras de menor dimensão já que estes pressupõem o seu total esvaziamento. Até agora, as conclusões traçadas, resultantes desse acompanhamento, referem que “a partir do momento em que a capacidade de armazenamento dessas albufeiras esteja fortemente diminuída, essas barragens deixam de ter interesse”, originando perdas nas mais variadas vertentes.

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