Pandémicos, frágeis, humanos (ou o ano do nosso desalento)

Deste ano que, mais do que o do nosso descontentamento, foi o do nosso desalento, sobrar-nos-á, seguramente, a consciência da nossa (demasiado humana) pequenez. Se assim foi, talvez a utopia da generosidade e da dádiva solidárias ainda seja possível.

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Daniel Rocha

Há precisamente um ano, num tempo que já nos vai parecendo noutra vida, começávamos a ouvir falar de um vírus respiratório, de elevadas contagiosidade e letalidade, com origem na cidade chinesa de Wuhan. Percebíamos, vagamente e sem lhe prestar demasiada atenção (tal como parecem não lhe ter prestado demasiada atenção inicial os organismos internacionais, responsáveis pela saúde), que era algo que teria a ver com a venda de animais vivos nos mercados.

Mas a verdade é que a China fica longe, tal como nos vai sendo cada vez mais longínquo o hábito do comércio de animais vivos nos mercados, nestes tempos das regras assépticas e da homogeneidade calibrada.

E também já não era a primeira vez que nos chegavam notícias de epidemias na China e, por isso, desvalorizámo-las (como parecem tê-las desvalorizado, também, os organismos internacionais, responsáveis pela saúde).

Contribuiu, de igual modo, para esta desatenção generalizada, o facto de, neste ocidente que governa o mundo, estarmos ocupados com a quadra festiva e com os preparativos para o Ano Novo.

Um Ano que, mais do que o do nosso descontentamento, seria (foi) o do nosso desalento. Mas isso não o sabíamos, ainda, quando contámos as badaladas que nos trouxeram a 2020 e brindámos a tantos desses pequenos desejos individuais, que se nos afiguram, agora, ocos de propósitos, fúteis e mesquinhos, mas que eram, afinal, os desejos da nossa “normalidade” conhecida.

E mesmo quando, entre uma e outra badalada, nos desejámos, e aos nossos, muita saúde, não tínhamos a verdadeira noção da dimensão daquilo que pedíamos.

Entretanto, chegou Janeiro, esse mês tradicionalmente frio e deprimentemente longo (tanto no calendário como nas carteiras), e chegaram as notícias dos casos de infecção em Itália, multiplicando-se a um ritmo tal, que os serviços de saúde pouco mais poderiam fazer do que gritar ao mundo o seu desespero e a sua impotência.

E depois de Itália, a Espanha, a França, a Inglaterra, os Estados Unidos e Portugal. O vírus deslocava-se à exacta velocidade, e com a mesma intensidade, dos fluxos de pessoas, de mercadorias e do capital.

Numa ironia macabra, foi um vírus a mostrar-nos o pleno significado do, sempre ideologicamente controverso, conceito de globalização.

E foi um vírus a mostrar-nos, também, o real valor dessa liberdade, que tomávamos como adquirida, e o real sentido dos nossos próprios modos de vida, que julgávamos garantidos, ou das nossas rotinas, contra as quais, descontentes e maçados, tantas vezes nos insurgíamos.

De repente, as palavras confinamento, isolamento e distanciamento passaram a dominar o nosso léxico e revelaram-nos um outro lado da(s) vida(s), ao mesmo tempo que as máscaras nos esconderam os sorrisos, progressivamente apagados pelo medo: medo da doença, medo do desemprego, medo da miséria, medo do outro e, sobretudo, medo do próprio medo.

Nessa altura, no final de Março, com um país confinado e a tentar equilibrar-se na corda bamba dos desafios do tele-trabalho, da tele-escola, das tele-famílias e dos tele-amores, pedi a amigos e conhecidos, via redes sociais, que partilhassem, comigo, as suas experiências do confinamento. Que partilhassem as suas vivências e emoções privadas.

Muitos corresponderam a este pedido, e da mais de centena e meia de testemunhos ressaltou uma evidente polarização entre a utopia e a distopia, entre o optimismo e o pessimismo, entre uma esperança redentora e um desespero já conformado.

Transferimos para a pandemia, agudizando-as, as nossas visões do mundo e da vida: o peso das nossas solidões e a força dos nossos laços; o orgulho nas nossas conquistas e a vergonha das nossas frustrações; as memórias do já vivido e as miragens do permanentemente adiado.

Tornámo-nos, neste processo, pessoas distintas.

Inverteram-se valores e prioridades, questionaram-se relações e opções, lamentaram-se as palavras ditas e os gestos por fazer, recuperaram-se lembranças e refizeram-se planos.

No abismo da incerteza e da perplexidade, perdemos o chão. Perdemos – nalguns casos para sempre – as mãos que se apertam e os abraços que se estreitam. Trocámos os corpos pelos ecrãs.

E entre a utopia de esta experiência poder constituir uma oportunidade única de revalorização do que há de mais puro e generoso em nós, como a empatia ou a dádiva ao outro; e a distopia da vivência pandémica como sendo a derradeira espoleta da revelação do nosso primitivismo e das nossas perversões, com a lógica prevalecente da lei do mais forte, há algo que ficou em evidência: deste ano que, mais do que o do nosso descontentamento, foi o do nosso desalento, sobrar-nos-á, seguramente, a consciência da nossa (demasiado humana) pequenez. Se assim foi, talvez a utopia da generosidade e da dádiva solidárias ainda seja possível.

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