Grito de alerta dos doentes crónicos

O tempo conta para quem tem uma doença crónica. É este o mote de uma campanha que reúne várias associações de doentes e dá voz a um manifesto pelo acesso aos cuidados de saúde. É urgente uma solução que permita dar resposta aos doentes de Covid-19 sem esquecer todos os outros, defendem.

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D.R.

É inegável a importância da pandemia de Covid-19 e a necessidade de dar uma resposta célere aos doentes infectados pelo Sars-Cov-2. E, se é verdade, que na primeira vaga de confinamento, havia o receio generalizado de procurar os cuidados de saúde para consultas de rotina e de vigilância de doenças crónicas, neste momento, a tendência tem-se invertido. É o que aponta o estudo elaborado no âmbito de uma campanha de sensibilização lançada a 9 de Dezembro, resultante de um inquérito à população por telefone e online.

Com o mote “Para quem está doente, o tempo conta” e promovida pela Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca (AADIC), a Associação Portuguesa Contra a Leucemia (APCL), a Careca Power, a EVITA - Associação de Apoio a Portadores de Alterações nos Genes Relacionados com Cancro Hereditário, a RESPIRA - Associação Portuguesa de Pessoas com DPOC e outras Doenças Respiratórias Crónicas e a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH), a campanha conta com o apoio da AstraZeneca, e pretende relembrar que “o acesso aos cuidados de saúde é um direito de todos”.

As conclusões do inquérito realizado a uma base de dados de indivíduos registada na plataforma da Multidados, no qual foram recolhidas e validadas 1000 respostas, entre os dias 14 de Setembro e 02 de Outubro de 2020, concluiu que durante o primeiro Estado de Emergência, apenas 28,8% dos portadores de doença crónica, como diabetes, doença cardíaca, doença respiratória ou doença oncológica, recorreram a um serviço de saúde para uma consulta ou tratamento. Findo este período, a percentagem subiu para cerca de metade: 53% confirmam ter ido, com apenas 5,8% a admitir ter faltado por receio da pandemia. Por outro lado, para 67% dos doentes, essa deslocação foi considerada segura ou relativamente segura.

A campanha alerta para o direito à saúde – que é de todos – e para a importância de garantir rastreios, consultas, exames, cirurgias para quem deles precisa. “Desde a prevenção, ao diagnóstico precoce, ao tratamento, ao estadiamento e à reabilitação, os doentes respiratórios ficaram suspensos durante este tempo. Houve um momento, em Maio, em que se pensou que se poderia recuperar embora todos tivéssemos consciência do desafio porque foram adiados milhares de consultas e de tratamentos mas, com os dados de infectados a que temos assistido, voltámos a retroceder”, explica Isabel Saraiva, presidente da RESPIRA. A responsável assegura que o contexto que vivemos fragiliza muito os doentes respiratórios crónicos que integram os grupos de risco para a infecção por Covid-19. Passados quase dez meses desde o início da pandemia, o que estes doentes sentem, “de forma generalizada, é que não existe assistência regular necessária para tratar das suas doenças”.

Uma das formas que os doentes encontraram de serenar a sua angústia foi através do acompanhamento que foi dado pelos médicos assistentes que se mostraram disponíveis para realizar teleconsulta, “à falta de melhor alternativa”, refere Isabel Saraiva, enaltecendo o facto de se terem disponibilizado para ouvir e tranquilizar estas pessoas.

Sobre o acompanhamento de pessoas com e sem doença crónica, o estudo revela a importância do papel do médico de família. Durante o Estado de Emergência (entre Março e Maio), dos 50% de doentes crónicos que recorreram a aconselhamento não presencial, 48% fizeram-no junto do médico de família ou de outro tipo de profissional, demonstra o inquérito realizado no âmbito desta campanha. O mesmo se verificou entre os 26,4% dos que, sem doença, recorreram ao mesmo tipo de aconselhamento: 47,4% fizeram-no também junto do médico de família.

Saúde comprometida

Para a presidente da Respira, as consultas de cessação tabágica são fundamentais pois o tabaco é um dos factores de risco principais da Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica (DPOC) mas também para a Covid-19. “Deveria haver uma gigantesca campanha nacional a explicar às pessoas que este é o momento ideal para deixar de fumar independentemente da idade, do sexo e da sua condição.  E quanto mais cedo for feito o diagnóstico através da realização de uma espirometria, mais depressa sabemos o que temos, iniciamos tratamento e a reabilitação respiratória”, defende.  São precisos cuidados regulares e uma vigilância apertada. “É isso que falta a muitos doentes crónicos respiratórios: um acompanhamento regular e efectivo”, sublinha.

Também os doentes oncológicos têm sentido o peso dos adiamentos. Miriam Brice é presidente da Careca Power e revela que, actualmente, o maior medo é que a situação se atrase ainda mais do que até à data. “Recebemos feedback de consultas adiadas, consultas que passaram a ser realizadas por telefone e que se impunham presenciais, em alguns casos, um acompanhamento que era de três em três meses e passou a ser de quatro em quatro e houve também uma grande redução de cirurgias”, explica. Não consegue definir e eleger o que é mais urgente. Tudo importa. O tempo conta. A também ex doente oncológica resume as consequências desta situação relativamente à pandemia, em três aspectos. “As pessoas vão morrer mais cedo, vão morrer com menos dignidade e o Estado vai gastar mais dinheiro com os doentes no futuro”, antevê.

Uma das questões que mais tem preocupado médicos de várias especialidades e representantes de associações de doentes é a falta de diagnósticos. Para dar um exemplo concreto, com o cancelamento dos rastreios oncológicos durante o confinamento obrigatório em Março e Abril, decorrente do estado de emergência, ficaram diagnósticos por fazer. “Em bom rigor, as pessoas fazem a sua vida normal, mas ainda não sabem que estão doentes pois não tiveram acesso ao rastreio”, afirma Miriam Brice. A representante destes doentes oncológicos refere ainda que, durante muito tempo, os exames complementares de diagnóstico estiveram parados ou diminuíram significativamente, realidade transversal a todo o país.

Nos hospitais, começámos a perceber a falta de referenciação por parte dos cuidados de saúde primários e mesmo em estreito contacto com estes, a resposta que nos era dada era a de que os recursos estavam a responder aos doentes com Covid-19. Logo aí defendemos que tínhamos de arranjar soluções para que este trabalho fosse realizado por outros profissionais e não por médicos”, explica Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH). Logo na primeira vaga, a APAH tinha alertado a Ordem dos Médicos, o Ministério da Saúde e a Direcção Geral da Saúde para a necessidade de criar uma espécie de “via verde de acesso aos doentes crónicos”. E apesar de ter noção do esforço realizado por vários hospitais individualmente, insiste na ideia de ter um trabalho em rede com uma resposta generalizada e que dê prioridade a diversas áreas.

Em Setembro último, a associação começou a publicar dados demonstrativos dos efeitos da quebra nos acessos aos cuidados de saúde. “Continuamos a exigir a criação de um plano concertado e a constituição de uma task force para doentes que não têm Covid-19. Isso nunca veio a ser operacionalizado daí que nos faça sentido integrar esta campanha para apelar a uma reorganização dos serviços”.

O presidente da APAH insiste no facto de existir um conjunto de pessoas que nem sequer foram diagnosticadas e nas consequências que esta realidade trará no futuro. “São doentes que vão aparecer mais tarde, em estádios mais avançados e as janelas de oportunidade que temos para tratá-los vão estar ultrapassadas com um aumento subsequente da morbilidade em todo o País.” E não se trata de recuperar o tempo perdido, mas sim de interromper estes ciclos de barreiras de acesso aos cuidados de saúde.

Para que ninguém fique de fora

Isabel Saraiva denota que durante a pandemia de Covid-19, acresce a falta de equidade. “Temos casos de centros de saúde de Lisboa que funcionam muitíssimo bem e, dos quais, os doentes não têm qualquer queixa relativamente à organização nesta fase de pandemia e temos outros casos de má organização. E o mesmo acontece nos hospitais com modos de funcionamento muito irregulares e diferenças estruturais”, faz saber.

Os representantes da Careca Power, da Respira e da APAH não minimizam a gravidade e a urgência decorrente da pandemia de Covid-19. Mas falam em reorganização. “Fará sentido reajustar e readaptar todas as doenças para que ninguém fique de fora”, diz Miriam Brice.

“Para nós, todos os dias contam”, alerta a presidente da Respira. “Não podemos esperar mais. É tempo de cuidarem de nós”, acrescenta. No futuro, esperam-se grandes problemas para resolver em resposta aos doentes pós-Covid além da acentuada crise económica, antevê Alexandre Lourenço. “Vamos ter pressões desde os cuidados que ficaram por prestar, do aumento da morbilidade pela falta de cuidados e do aumento das necessidades porque uma população mais empobrecida vai necessitar de mais cuidados de saúde.” Estas campanhas funcionam como “gritos de alerta”, destaca, para lembrar que “estes doentes não podem ser esquecidos”.