Dançar a vida como mulher vih+

Ao contrário do actual vírus SARS-CoV-2, o vih está controlado. Vih não é defeito, ameaça ou impedimento de nada. Aliás, em tempos de covid-19, quem já se confrontou com a própria mortalidade e aprendeu a viver face à incerteza vai um passo adiante.

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Ida Fiele

Há nove anos, tudo mudou. Com 28 anos recebi um diagnóstico de VIH (o Vírus da Imunodeficiência Humana)​ positivo e a vida passou a ter um antes e depois desse evento.

Em alusão ao Dezembro Vermelho, mês em que se celebra, simbolicamente, a 1 Dezembro, o Dia Mundial da Luta contra a Sida, quero partilhar aqui a minha caminhada de transformação, com a intenção de actualizar conhecimento, desconstruir preconceitos e normalizar a realidade em torno desta condição de saúde.

Um dos primeiros choques ao receber esta notícia foi aperceber-me de que não sabia nada sobre vih. Não conhecia ninguém perto desta realidade. A minha ignorância era tal que passei os primeiros tempos a achar que ia morrer, que iria ficar sozinha para sempre, que era um perigo para alguém. Actualmente, a realidade não poderia estar mais longe, mas foi necessária quase uma década de muita pesquisa, trabalho interior e abalo de estruturas.

Antes de tomar os anti-retrovirais, passei dois anos e meio em busca de curas alternativas. Encarei este diagnóstico bastante sozinha, longe das raízes, emigrada no Brasil. Uma espécie de vida paralela: ao mesmo tempo que fazia um doutoramento em Dança, fazia outro na dança da vida. Uma “peregrinação” que me levou à Amazónia, onde me encontrei com as medicinas indígenas do kambô e ayahuasca, ao Benim (África), onde recebi de um curandeiro um remédio de plantas medicinais e a outros 1001 caminhos de cura... Mais recentemente, essa mesma busca levou-me até à Califórnia para fazer formação com Anna Halprin, uma das precursoras do trabalho com a comunidade vih nos anos 80, e exemplo vivo da dança como caminho de cura.

Não morri, mas passei por várias “mortes”. Tive que fazer o luto da pessoa que eu era antes. Tive que soltar a auto-imagem de supermulher. Tive que aprender a encarar a morte como parte integrante da vida. Mesmo que, a dada altura, me tenha rendido ao caminho da medicina tradicional, não me arrependo desta jornada: percorri quatro continentes numa missão de cura, conheci pessoas incríveis, aprendi imenso sobre saúde holística, autocuidado, conhecimentos que hoje fazem parte das minhas práticas diárias e caminho de arte/profissão/vida.

Nesses dois anos e meio, estava convencida de que me ia curar. Eventualmente, essa cura chegou: não tanto na forma de uma cura física, mas mais como uma cura emocional. Aos poucos, fui percebendo que essa cura passava por ficar perto do que me traz vida: pessoas, lugares, hábitos, sonhos. Após essa primeira tomada de consciência, pude começar a abrir-me para aceitar. E, de mim para mim, grande parte dessa aceitação passou por encontrar um sentido maior para este acontecimento.

Há dores que servem para nos despertar. Este diagnóstico levou-me a encarar traumas, resistências e padrões que tinha que soltar. O vih foi só a ponta do icebergue, a cristalização de um historial de abuso sexual, psicológico, físico, que perpassou o meu corpo. Com este evento, fui forçada a sair da zona de conforto, a confrontar-me com o medo da morte, com as minhas crenças limitantes os meus preconceitos e auto preconceitos. Não existe vírus maior do que o medo, e este tempo de covid-19 está a revelar isso intensamente. E, por isso, tenho olhado para o vih como um mestre de vida, encaminhando-me, cada vez mais, em direcção à minha verdade. Este diagnóstico fez-me ter consciência da urgência da vida, de que o meu tempo aqui é precioso.

Demorei nove anos para tomar fôlego. Nesta transformação, a grande viragem surgiu quando percebi que parte da minha missão seria trabalhar com outras pessoas na mesma condição de saúde. Então, desde 2017, estou comprometida com a área de justiça social, colaborando pontualmente com a SERES, única ONG para mulheres vih+ em Portugal. Criei um solo work in progress sobre o processo de transformação decorrente da convivência com esta condição de saúde. E, recentemente, fui contemplada pelo Eramus para Jovens Empreendedores da União Europeia, com um projecto direccionado para a comunidade vih que cruza as áreas da arte, saúde e educação. 

O caminho não foi sempre ascendente, passei por várias situações de discriminação por parte de familiares, conhecidos e outras pessoas. Mas o maior preconceito que tive que encarar foi o meu. Se, num primeiro momento, não quis contar a muita gente, o tempo foi passando e fui sentindo o quanto era necessário. Nos momentos de choque inicial foi essencial ter encontrado referências de outras mulheres jovens, bonitas, com sonhos, a mostrar que é possível ter uma vida completamente normal e até esquecer o vírus. A visibilidade dessas mulheres permitiu-me actualmente reivindicar a minha. Ainda hoje, o vih é uma das condições de saúde mais estigmatizadas que existe, principalmente sendo mulher, artista, freelancer, numa sociedade conservadora como a portuguesa. Foi uma pressão grande furar esse silêncio e senti essa pressão. Sinto-me chamada a dar o meu contributo nesse sentido. Apesar de estar numa situação laboral precária, percebo que o meu lugar de fala, como mulher branca, portuguesa, com doutoramento e alguma retórica, é um lugar de privilégio que precisava de ser potencializado para que este assunto tivesse um alcance maior.

Partilhei o meu status com o mundo no dia 1 de Dezembro, ritualizando a minha “saída do armário” através da arte. Fi-lo de duas formas: partilhando nas redes sociais a minha participação no ensaio fotográfico BodiXpositive de Ida Fiele (projecto que busca retratar e empoderar o corpo de pessoas que vivem com vih), publicando em simultâneo um testemunho da minha jornada como mulher positiva. E, no mesmo dia, partilhei o meu status nas ruas de Lisboa através do flashmob #HIVisible. Esta performance-ritual foi um acto simbólico de visibilidade dedicado/protagonizado por pessoas que vivem com vih, sendo a primeira acção de um colectivo recém-formado de artistas e activistas sediados em Portugal, o #ColetivoViral. Idealizado por mim e Paolo Gorgoni, tornou-se surpreendentemente um movimento transnacional apoiado por artistas, activistas e organizações sero-envolvidas, com acções similares a acontecer em Roma, Bolonha, Londres, São Paulo.

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Giulia Ferrari Photography

Após estas acções recebi um banho de amor sem precedentes: o post foi partilhado 56 vezes, 600 likes, 260 comentários, e perdi a conta das mensagens, comentários, revelações, convites, ligações… Pessoas de vários cantos do mundo que se identificaram com esta história, confirmando o quanto ao falarmos sobre este assunto estamos a falar sobre tantos outros.

O que mudou?

Hoje em dia, ter vih não é mais uma sentença de morte. Desde 2016, está provado cientificamente que pessoas com vih que estejam em tratamento passam a ter uma carga viral indetectável, o que significa que não podem mais transmitir o vírus. A evolução terapêutica trouxe muita qualidade de vida para quem já era portador. Porém, levou a que, na última década, este assunto deixasse de ser falado, a que o imaginário sobre o vih congelasse na versão divulgada pelos média nos anos 80/90, e, consequentemente, ao surgimento de novos casos.

Vivemos numa época em que o vih não é mais uma doença física, mas uma doença social. Perdura a ilusão de que é algo que está muito longe. Continua a considerar-se o vih como uma “doença dos homossexuais” ou de quem teve comportamentos desviantes e imorais. Pouquíssimas pessoas sabem que uma pessoa vih + que segue a terapia consistentemente é um dos parceiros sexuais mais seguros que existem, que possui uma probabilidade próxima de zero de transmitir o vírus para seus filhos e que tem uma expectativa de vida idêntica à de qualquer outra pessoa. Isso mesmo: uma pessoa que não só sabe o seu status mas que está a ser medicada, que faz check-up geral de seis em seis meses e que mantém o vírus adormecido é um corpo a menos no cenário “roleta russa”. Então, nos últimos anos, a realidade inverteu-se: as pessoas que vivem com vih passaram a ser os actores principais no controlo da epidemia.

Sabemos hoje: preconceito ao redor do vih gera mais vih. Pessoas que vivem com vih frequentemente ainda enfrentam preconceitos e discriminações várias, o que prova o quão importante é reactivar o diálogo sobre o assunto. Talvez essa hora tenha chegado agora, em que a palavra vírus está nas bocas do mundo.

O vírus SARS-CoV-2 inaugurou uma nova fase para a humanidade. De repente, existe um vírus que destronou o vih como inimigo público n.º 1. Existe, a meu ver, uma oportunidade de ouro por detrás deste novo vírus: o perigo deixa de estar “fora”, circunscrito a (um) grupo(s) marginalizado(s) percebidos como ameaça. Pode estar em qualquer lado; nós próprios podemos ser “o perigo”. A meu ver, esta é uma grande lição de empatia, e por isso acredito que é uma boa altura para reacender o diálogo sobre este assunto. À semelhança do que está a acontecer com o novo vírus, precisamos relembrar que o vih não é uma questão “deles”, é uma questão nossa. Para que se possa transformar a realidade em torno do vih/sida é preciso cada um assumir a sua co-responsabilidade no controle da epidemia. 

Ao contrário do actual vírus SARS-CoV-2, o vih está controlado. Não é defeito, ameaça ou impedimento de nada. Aliás, em tempos de covid-19, quem já se confrontou com a própria mortalidade e aprendeu a viver face à incerteza vai um passo adiante… Não é por acaso que os EUA estão a convidar sobreviventes/pessoas que vivem com vih para discussões sobre como reinventar o mundo na era pós-covid-19.

“Tens que te transformar para transformar o mundo”

Tenho a sorte de pertencer a uma geração em que viver com vih não é mais uma sentença de morte. O que esta nova fase traz é a possibilidade de narração: o poder de contar e, simultaneamente, reescrever a minha história.

Acredito que testemunhos assim têm a força para desconstruir preconceitos, mudar mentalidades e contribuir para uma sociedade mais sensível e empática. E, ao mesmo tempo, tenho-me dado conta que isto vai muito além da causa vih/sida.  É um movimento que reivindica a libertação do corpo feminino, que age não só neste presente imediato, mas que convoca toda uma cura intergeracional. E, acima de tudo, este é um movimento pelos direitos humanos. Empenhado com a construção de um espaço para a diversidade: com a dissolução da culpa, opressão, moralismo, segredo, negação do prazer e invisibilidade associadas a determinados corpos e experiências de mundo.

O processo de auto-cura a que me tenho dedicado possibilitou nomear as minhas dores, mas, principalmente, poder transformar a doença e o sofrimento em emancipação pessoal e política. Sinto-me muito abençoada pelo caminho, mesmo tendo tropeçado muitas vezes. Continuo na estrada, com muito para aprender, soltar e desconstruir. Sou eternamente grata por quem esteve ao meu lado em momentos desafiantes, lembrando-me sempre de escolher a vida. Imensamente feliz em dizer que não estou apenas sobrevivendo, estou florescendo.

Nota da autora: A sigla vih é utilizada ao longo deste texto em letras minúsculas, como forma de suavizar o “peso” associado à palavra.

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