Uma viragem definitiva? Tempo de esperança?

Estes dias foram, sem dúvida, um ponto de viragem que celebramos, mas não são a vitória. São enormes os problemas da sociedade portuguesa, agora substancialmente agravados pelas consequências desta pandemia que marcou o ano terrível de 2020.

O homem é a medida de todas as coisas.
Protágoras, 490-420 a.C.

26/27 de dezembro 2020, data que ficará na memória colectiva europeia, começo oficial da vacinação contra o vírus SARS-CoV-2 nos 27 países da União. Juntar as duas na mesma data será ficção, como em tantos aspectos a UE ainda o é, mas é simbólico dum desideratum, duma filosofia e duma Esperança. E em toda a coreografia de unidade que foi transmitida aos europeus, foi interessante perceber as diferenças nos países, expressão idiossincrática de um modo de ser e agir. Da sobriedade emocionada da presidente da União à utilização mediática de protagonistas nacionais, desde governantes a líderes religiosos, submetendo-se à vacinação para mobilização dos seus concidadãos, foi uma variação que é bem o espelho da diversidade europeia, da sua cultura e tradição política e do ainda necessário e difícil caminho para a Jerusalém ambicionada.

Recordo dois factos marcantes pelo seu simbolismo.

Sábado, na Alemanha, como em 8/12 no Reino Unido, como domingo na França e Espanha, os primeiros vacinados foram pessoas singulares, cidadãos anónimos, não identificados com qualquer estrutura organizada da sociedade, idosas para lá dos 90 anos, mas perfeitamente lúcidas como se verificou nas curtas entrevistas feitas. Na fragilidade da sua provecta idade, que as colocava no grupo de mais elevado risco e que na evolução da pandemia foram os que mais sofreram e morreram – os mais vulneráveis! –, o que se pretendeu sinalizar foi a dimensão humanista que é alicerce da cultura europeia. Era o cidadão anónimo, despojado de poder, de representação ou de qualquer outro atributo social ou económico, que conferia o verdadeiro sentido a esta nova fase no combate contra a pandemia. Convergência no indivíduo, como símbolo do humano essencial, na sua dimensão única e irrecusável, medida de todas as coisas e centro de todo aquele processo. E se esta pandemia algo de melhor poderá ter trazido à nossa sociedade foi a defesa do valor da vida, da mobilização de todos os recursos disponíveis no tratamento dos mais vulneráveis, dos doentes, a supremacia da Cultura humanista sobre o determinismo biológico darwiniano, cruel e pragmático consubstanciado nas políticas de imunidade de grupo infelizmente permitidas nalguns países, na realização do Bem Comum, que é a verdadeira Jerusalém em construção pela cidadania empenhada.

Foi pena que este simbolismo não prevalecesse cá, como noutras geografias, substituído por putativa visão pragmática a qual subvaloriza o indivíduo ao poder do grupo, das corporações, dos próximos. Sejamos claros. Ninguém questiona que os profissionais de Saúde, os médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, técnicos, funcionários – a ordem seguida é expressão do dever de responsabilidade no tratamento, nada mais – são decisivos nesta batalha, merecem todo o reconhecimento independentemente do seu local de trabalho, categoria profissional e pertença ao serviço público. E que são essenciais neste combate e devem ser protegidos. E os outros, os que garantem a produção dos alimentos que consumimos e sem os quais não vivemos, os que asseguram a sua distribuição, aqueles que preservam a nossa segurança e tranquilidade públicas, não serão eles também fundamentais? E para a Educação, como há dias um colega suscitou, e muito bem, na televisão, não é tão fundamental agir preventivamente? Foi oportunidade perdida para reforçar o simbolismo do exercício, pois foi disso que se tratou e mediatizou. Nada impedia que os profissionais de saúde e outros elementos indispensáveis fossem vacinados a seguir. Nada é por acaso. Foi expressão de uma visão utilitária e reverencial da Vida e prevalecente na Sociedade portuguesa, que importa não esquecer, não obstante as convergências necessárias do ofício de viver.

Reconhecendo o mérito da acção desenvolvida e congratulando-me com o facto de Portugal integrar a resposta europeia, compreendo e felicito que se tenha assinalado o começo da vacinação no hospital que recebeu o primeiro doente. Foi um acto simbólico de justiça, gratidão e respeito a que me associo sem reservas. Pelas razões já expostas, podia e devia ter começado por uma pessoa da comunidade e não por profissional de saúde, por muito respeitável que tenha sido a escolha. Mas uma nova questão surge no meu espírito. Por que limitar, no primeiro dia, só aos principais hospitais do litoral do País? Não teria sido possível um esforço de organização que simbolicamente marcasse a iniciativa em todos os distritos onde há um hospital do SNS, regiões autónomas incluídas? Não é esta uma luta de todos e para todos, sem excepção, nem discriminação e em todo o território?

Só poderá haver uma explicação. Como é hábito entre nós, cuidámos tarde e preparámo-nos a correr, por isso esquecemos o valor do simbolismo na acção política. Há meses que Alemanha, Reino Unido, Itália e Espanha, para só mencionar alguns, têm vindo a estruturar os seus planos de contingência para a distribuição global e equitativa das vacinas no seu território, procurando eficácia e preservando a capacidade de intervenção dos seus serviços de Saúde. Grandes espaços foram preparados para o efeito, deslocando os cidadãos dos centros médicos e assim reduzindo contactos e oportunidades de contágio e evitando desorganizar a restante actividade clínica. E mobilização de todos os recursos, públicos, privados e outros, que serão indispensáveis numa estratégia que se pretende global. Porque o objectivo do programa de vacinação é claro – obter uma imunidade populacional tão generalizada quanto possível que reduza contágio e menorize as possibilidades de emergência de novas mutações virais – e isso depende muito do tempo, da rapidez e da amplitude da intervenção. Haverá obviamente constrangimentos, imponderáveis, da produção à disponibilização e distribuição das vacinas em cada país. Mas quanto mais prolongado for o tempo de vacinação, menor poderá ser a sua eficácia, maiores os riscos de incerteza e cansaço na população, da persistência de comportamentos inadequados, do despautério conspirativo das redes sociais e, infelizmente, maior o prolongamento da asfixia económica da sociedade.

Estes dias foram, sem dúvida, um ponto de viragem, um turning point que celebramos, mas não são a vitória. São enormes os problemas da sociedade portuguesa agora substancialmente agravados pelas consequências desta pandemia que marcou 2020, ano terrível – hopes expiring in a low and dishonest year!, parafraseando Vasco Pulido Valente (VPV), cujas crónicas foram perda irreparável, com a sua citação de WH Auden que adaptei. A Esperança renasceu e o mês frio de Dezembro trouxe-nos três grandes momentos de júbilo. Primeiro, as vacinas, um extraordinário feito da comunidade científica e da indústria farmacêutica sem par na história da Medicina, só possível pela cooperação e partilha do conhecimento sem barreiras nem fronteiras, físicas ou ideológicas. Segundo, o reforço da Europa, e a cooperação com o Reino Unido, que foi o garante da Liberdade e Democracia in the darkest hour, parceiro insubstituível que o acordo do “Brexit" finalmente consubstancia e, em terceiro lugar, a confirmação da vitória democrata nos Estados Unidos, perante a mais absurda e descabida investida totalitária na pátria constitucional dos direitos e deveres! Assim saibamos merecer esta nova oportunidade num novo Ano que seja de mudança, desenvolvimento, lucidez e tranquilidade! 

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