O Bar Americano fechou no ano do seu centenário

Um dos bares mais antigos do Cais do Sodré, em Lisboa, pelo Americano passaram várias gerações de marinheiros e noctívagos, mas também Pessoa ou Cardoso Pires. Quarteirão vai ser hotel de quatro ou cinco estrelas.

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Filipa Fernandez
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O Bar Americano, que em 2020 completou um século de existência, já não vai festejar o 101º aniversário. Fechou definitivamente as portas há cerca de dois meses e o prédio em que funcionava vai brevemente entrar em obras que o transformarão num hotel.

O Americano era um dos símbolos da Lisboa boémia que despontou no Cais do Sodré em princípios do século XX alimentada pela constante acostagem de navios estrangeiros. Fundado em 1920, partilhava a Rua Bernardino Costa com o seu congénere um ano mais velho, o British Bar, e, como este, adoptou um nome facilmente reconhecível para os marinheiros, que constituíram durante muito tempo uma parte fundamental da sua clientela.

Seguindo essas pegadas iniciais, vários outros estabelecimentos da zona foram inspirar-se a cidades e nomes estrangeiros para abrir portas: Copenhaga, Liverpool, Roterdão, Texas, Viking, Oslo, Tokyo, Jamaica.

Tanto o Americano como o British têm há alguns anos o mesmo gerente, embora o dono do Americano fosse um bisneto do fundador. O PÚBLICO não conseguiu chegar à fala com eles, mas confirmou o encerramento definitivo do bar junto de duas fontes. Também a empresa proprietária do edifício, a gestora de investimentos imobiliários Patrizia, confirma o fecho.

“O imóvel a que se refere é propriedade da Patrizia, que tem a intenção de o transformar num hotel consonante com o passado glamoroso e a ambiência histórica do bairro, criando uma nova fonte de emprego para a economia local”, disse um porta-voz da empresa. “O pequeno espaço comercial vazio a que se refere vai ser ocupado novamente no futuro por um pequeno negócio local, plenamente alinhado com a história deste edifício emblemático.”

O edifício ocupa um quarteirão inteiro entre a Praça Duque da Terceira, a Rua Bernardino Costa, a Travessa do Corpo Santo e a Ribeira das Naus. Todos os inquilinos estão a mudar-se por estes dias. Além do Americano, fecharam aqui estabelecimentos como um bar irlandês, um bar de cerveja artesanal, uma pizzaria, uma escola de condução e uma agência de viagens, além de vários escritórios de empresas nos pisos superiores.

De acordo com uma nota de imprensa publicada no site da Patrizia em Julho de 2019, momento em que a empresa adquiriu o imóvel em nome de um fundo de pensões alemão, o futuro hotel terá uma categoria de quatro ou cinco estrelas e mais de 100 quartos nos seus 6200 metros quadrados.

O Bar Americano foi frequentado por alguns notáveis como Fernando Pessoa, Alexandre O’Neill e José Cardoso Pires, que sobre ele escreveu em crónicas de jornais e no Lisboa, Livro de Bordo. “Não há dúvida, os bares são realmente navegações pessoalíssimas”, lê-se na obra de 1997. “Em tempos foi um balcão de suevos, daneses e britânicos, funcionários, todos eles, das agências de navegação do Cais do Sodré, e aqui, hoje que o dia está de feição, torno a tropeçar noutro poeta: o Pessoa. (…) Também ele, nos gloriosos anos trinta, frequentava o Americano às horas litúrgicas dos morning drinkers. (…) Nos bares do Cais do Sodré ninguém está livre de apanhar com um poeta à deriva pela proa.”

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Na última década, o Cais do Sodré conheceu uma profunda transformação muito à boleia de se ter fechado ao trânsito a Rua Nova do Carvalho (a rua cor-de-rosa), onde a cidade redescobriu uma zona de vida nocturna. Os marinheiros e prostitutas deram lugar à juventude cosmopolita, aos turistas e aos empreendedores da Web Summit, levando ao aparecimento de novos negócios, à reabilitação de muito edificado e à sua transformação em hotéis e hostels. Mas todas as mudanças vieram acompanhadas de queixas dos residentes, um grupo cada vez mais rarefeito, sobre o aumento da insalubridade, do ruído e da insegurança. Em ano de pandemia, o bairro teve dias fantasmagóricos.

Fora do epicentro da movida, o Americano podia passar despercebido por causa da sua porta discreta, mas o grande painel de azulejos à entrada, publicitando uma marca de vinho do Porto, servia de chamariz. O bar estava classificado como Loja com História pela Câmara de Lisboa desde 2017.

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