Isto é (muito) mais do que a Seiva Trupe

O desfecho deste caso não importa unicamente à Seiva Trupe. A defesa da Seiva Trupe é que, neste caso, importa à causa da Cultura e da Democracia.

A falta de apoios do Ministério da Cultura à Seiva Trupe, e que tem originado um coro amplíssimo de protestos, é a ponta de um iceberg. Um iceberg que avança contra a navegação de tudo quanto seja organização e actividade culturais históricas, estruturadas e estruturantes. Os protestos são o levantar de um dique para fazer frente à natureza destes ataques soezes com características geracionais e de facção. Maioritariamente expressam-se por aqueles que pensam que nada houve antes deles e que vão ficar eternamente nos 40 anos; e mais uns quantos que julgam que ainda os têm. Mas não são todos esses. Antes são os de uma facção, predominante no exercício de influência sobre um poder político desavisado e pouco empenhado na causa da Cultura. Uma facção de cânone único estético, ainda que com estirpes variáveis. Uma facção com um corpo doutrinário que não vê, nem quer, para a Cultura mais do que o evento; que sente desprezo pelo público entendido como um destinatário essencial para dar sentido ao financiamento estatal; que passeia jactante a assumida ignorância do reconhecimento do saber como um conjunto de conhecimentos passados e presentes, diversos, aplicados à vida. Os seus paupérrimos horizontes começam e acabam na pós-modernidade (ou pós-pós) e, ainda-por-cima, muito mal apreendida.

Esta situação é a expressão cultural da ‘cidade líquida’ de Zygmunt Bauman, como bem o explicou Regina Guimarães. É a cidade do não-compromisso de laços sociais e afectivos, sem noção, e sem princípios, de valores. É a sociedade da desresponsabilização individual e do desinteresse pelo colectivo humano. É o deslaçar civilizacional de conceitos que se auto-anulam enquanto tal, para consagrar-se à ‘era do vazio’, que Lipovetsky denunciou.  

Assim, o caso da Seiva Trupe importa por si, naturalmente, mas importa também, e muito, ser analisado e enquadrado neste estado de coisas. A começar logo pela ‘justificação’ da irresponsabilidade. A argumentação de que a decisão resultou de um Júri ‘independente’ não colhe: mesmo que o fosse, essa decisão, como lucidamente e significativamente o disse nas Redes Sociais o Presidente da Federação Distrital do Porto do próprio partido do Governo, não pode ser tomada como um ‘absoluto’. Mas, mais ainda, tal Júri é ‘em dependente’ desse modo e desse modelo de estar. E ele é sempre o mesmo. Podem variar os indivíduos, mas o sujeito não muda. Nem muda o objecto das decisões. Por isso, urge trazer ao terreno da responsabilidade política e cívica a tutela e o Governo da República.

É por tudo isto que o combate em defesa da Seiva Trupe, essa que a mim compete fazer como seu responsável máximo actual, é (muito) mais do que isso. É o combate por uma ‘cidade’ sólida com uma ponte entre margens opostas, capaz de oscilar, mas não liquefeita. É o combate por uma ‘era’ espiritualmente preenchida com diversidade, mas não com ausência de pensamento; sem dogmatismos morais, mas com valores éticos humanistas. A circunstância casuística de à volta deste caso haver um toque de tambores a rufar pelo Porto e pelo Norte, não é nem central, nem despiciendo. É redutor pensá-lo como o Norte contra o Sul. Essa face do poliedro é apenas a tradução da singularidade de síntese cosmopolita com identidade, que caracteriza o Porto. Aliás, aquilo de que se trata nem é ‘ser contra’ a realização de eventos, muito menos contra as expressões de uma arte (pós)-pós-moderna; trata-se, outrossim, de não aceitar que essas sejam as expressões totalizantes que esmagam o direito à liberdade de criação e o dever de preservar a recepção alargada da criação artística numa perspectiva a que Bento de Jesus Caraça chamou “a formação integral do indivíduo”.  

Por tudo isso, mais do que salvar a Seiva Trupe, não deixando de ser isso como estandarte contra um escândalo de proporções inusitadas, estamos na fronteira de onde se não pode recuar porque para lá só resta o abismo. O desfecho deste caso não importa unicamente à Seiva Trupe. A defesa da Seiva Trupe é que, neste caso, importa à causa da Cultura e da Democracia.

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