Segurança Alimentar – um direito básico

Em muitas situações parece continuar a prevalecer a ideia de que para os pobres qualquer coisa serve. Quem ajuda as pessoas nestas condições deve fazer-se, constantemente, esta pergunta: se fosse eu, gostaria de receber o que estou a dar?

Muitas são as organizações sociais que, ao longo de cada ano, colocam a maior das suas preocupações para assegurar a alimentação a pessoas financeiramente fragilizadas. Desde a confeção de alimentos, à distribuição de produtos alimentares e até à criação de cantinas sociais, com esta ou outra designação, e à dádiva credível de vales para a compra destes produtos, muitas são as iniciativas para que ninguém passe fome. Há até iniciativas espontâneas de gente anónima que tem este tipo de cuidado.

Então, na altura do Natal, são mais frequentes estas iniciativas de fornecimento de alimentos e de realização de refeições solidárias. Receio que a falta de planeamento e de articulação institucional faça acontecer, o que não é raro, um excesso de realizações que produzem incalculáveis sobras, sendo que as pessoas que as levam poderão não ter condições de armazenamento nem rede de frio suficientes para as conservarem, de modo a utilizar os bens doados, antes de perderem a validade. É pena que não funcionem em todas as juntas as Comissões Locais de Freguesia, pois seria esse o lugar onde estas iniciativas poderiam ser planeadas e coordenadas para que não houvesse qualquer tipo de duplicação e não fosse beneficiado, indiscriminadamente, quem aparece. A Rede Social, sob a animação das câmaras municipais, poderia ser outra das instâncias que poderiam fazer este trabalho.

Deixar alguém passar fome, sabendo que isso acontece verdadeiramente, deveria ser considerado crime. Mas há gente que vive nesta dramática situação sem se dar a conhecer. Têm vergonha, pois nem sempre este serviço é prestado com o cuidado de respeitar a dignidade das pessoas. Nem sempre os lugares de distribuição são os mais apropriados nem as horas as mais convenientes para o ritmo de vida de algumas famílias, tendo em conta que nem todas as casas têm micro-ondas e nalgumas até falta o gás para se conseguir o necessário reaquecimento. Em muitas situações parece continuar a prevalecer a ideia de que para os pobres qualquer coisa serve. Quem ajuda as pessoas nestas condições deve fazer-se, constantemente, esta pergunta: se fosse eu, gostaria de receber o que estou a dar?

O próprio Estado tem também um programa para assegurar a alimentação às cidadãs e cidadãos que dela carecem. Chama-se Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (POAPMC) que, segundo fontes governamentais, em face da pandemia que se registou em março, foi decidido aumentar a distribuição alimentar de modo a duplicar a capacidade de apoio às famílias. Mesmo assim, no mês passado, o Tribunal de Contas revelou que, em finais de 2019, o Programa apresentava uma taxa de execução de apenas 32%, apesar de a taxa de compromisso se situar nos 92% [1]. Esta notícia perturbou-me. Procurei a justificação para este déficit junto da entidade responsável pela gestão desta distribuição. Foi-me dito que não existe qualquer desperdício de verbas neste programa. De acordo com o aprovado pela Comissão Europeia, este Programa pode ser executado até 31 de dezembro de 2023; até à data, a taxa de aprovação do financiamento já atingiu o limite de 100% da dotação programada para o ano de 2020. Ou seja, o que se previa despender até ao ano de 2020 foi despendido na íntegra. O que falta despender é relativo aos anos de 2021/2022 e 2023; a taxa de execução face à totalidade do programa é de 45%, o que demonstra que este ano, em 2020, a execução aumentou cerca de 13% face a 2019; a taxa de execução referida no referido relatório, de 32%, é a execução da totalidade do programa até final de 2019; em outubro deste ano, já tinham sido apoiadas 113 mil pessoas.

Foi-me dito que Portugal é dos poucos países da União Europeia que sinalizou, junto da Comissão Europeia, que pretende iniciar o processo de implementação de vouchers/cartões eletrónicos para pagamento destes apoios junto das famílias. Fiquei animado com esta iniciativa. Poderá ajudar a muitas situações da designada “pobreza envergonhada”. Esta nova e assertiva iniciativa deverá criar condições de credibilidade para ser eficaz e eficiente. Decerto que não irá dispensar a distribuição de refeições nem de géneros alimentares, pois, desgraçadamente, há gente tão pobre que nem tem casa e mesmo tendo-a não tem condições para confecionar refeições. Mas que esta distribuição assegure a dignidade dos destinatários.

Presidente da Confederação Portuguesa do Voluntariado

[1] Cfr. https://www.tcontas.pt/pt-pt/MenuSecundario/Noticias/Pages/noticia-20201116-02.aspx, visto no dia 20.12.2020, às 15h35

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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