Reino Unido: camionistas portugueses continuam à espera para prosseguir viagem. Natal já não vai ser em casa

Associação de transportes e mercadorias estima “mais de 300 ou 400 motoristas portugueses” retidos no Reino Unido. Condições de higiene e apoio dado aos camionistas deixam muito a desejar, dizem portugueses retidos no aeroporto de Manston. Governo já enviou equipa para o terreno.

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França reabriu esta quarta-feira a fronteira com o Reino Unido, mas a espera pela travessia continua para milhares de camionistas LUSA/VICKIE FLORES

O bloqueio da fronteira de França com o Reino Unido foi levantado esta quarta-feira, mas as filas de espera do lado inglês não diminuíram, com milhares de camionistas encurralados à espera de poderem retomar viagem. O Natal em casa já é uma impossibilidade para muitos motoristas, inclusive para os portugueses que se encontram retidos.

O presidente da Associação Nacional de Transportadores Públicos Rodoviários de Mercadorias (Antram), Pedro Polónio, disse esta quarta-feira ao PÚBLICO que estão no Reino Unido à espera de passar “mais de 300 ou 400 motoristas portugueses”. “Estamos a falar de um sítio em que passam dez mil camiões por dia. Agora passam menos porque são vésperas de Natal, nesta última semana. Se fosse na semana passada, já lá estavam parados mais de 40 mil”, explicou, acrescentando que o número total de veículos deve rondar os dez mil.

“É uma vergonha indigna dos dias de hoje e de políticos sérios”, critica Pedro Polónio, apontando o dedo à decisão do executivo de Emmanuel Macron, que acusa de utilizar os milhares de trabalhadores parados “como arma de arremesso” para uma questão política, sob pretexto de saúde pública.

“O que seria um risco temporário de passagem pelo sul de Inglaterra é agora um perigo, acaba por estar a expor as pessoas a um risco”, explica o dirigente. A nova estirpe do coronavírus apareceu em força nesta zona do país, algo que não seria um risco de maior para boa parte dos camionistas, uma vez que “a maioria vem directa de norte e passa sem parar”.

Sem condições nem informações

Nenhum dos motoristas com quem o presidente da Antram tem mantido contacto foi testado durante um processo que está a ser “muito demorado”. Há camionistas estacionados na M20, parados junto ao porto de Dover e outros ainda que foram reencaminhados para a pista de um aeroporto desactivado em Manston.

“Estão deixados ao abandono, sem condições nenhumas”, lamenta. “Estão a sobreviver por eles próprios e com alguma ajuda que possamos dar ao telefone, o que quer que seja. Dinheiro não há-de faltar, mas o dinheiro no meio do deserto não vale nada, e na prática eles estão no meio do deserto”.

José Manuel Carvalho é um dos camionistas que foi reencaminhado para a pista de Manston, a 43 quilómetros do porto de Dover. O português iniciou a viagem de regresso na segunda-feira em direcção a Dover para apanhar o comboio até Calais. Esta terça-feira deparou-se com a auto-estrada M20 cortada, tendo-lhe sido indicada a morada do aeroporto onde deveria esperar por autorização para retomar viagem para o lado francês. Não sabe quantos camiões estão no local.

“Há filas até perder de vista. É uma pista completa, e as condições não são as adequadas”, conta ao PÚBLICO. As casas de banho são amovíveis, de plástico, e cada uma serve dezenas de pessoas, “sem as mínimas condições de higiene" ou desinfecção. Uma situação que ainda preocupa mais o português devido ao contexto epidemiológico. “Se uma pessoa estiver infectada, contamina-nos também. Temos de nos manter o máximo possível na cabine para nos protegermos.”

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Centenas de camiões foram reencaminhados para um aeroporto desactivado em Manston, a 43 quilómetros do porto de Dover PETER NICHOLLS/ Reuters

“Não temos luz. Ontem de manhã a única coisa que nos deram foram duas garrafas de água, foi assim que passámos o dia. Hoje colocaram aqui uma roulotte para nos darem algum suporte de comida. Entretanto já vieram aqui voluntários com viaturas ligeiras que encostaram à rede do aeroporto e nos atiraram água e alguns produtos de higiene”, contou José Manuel Carvalho.

Pedro Polónio acrescentou também que um dos camionistas lhe contou que as autoridades vão tentando provisionar alguns condutores na M20, onde foi distribuído “um pouco de arroz com grão”.

“Vale o que vale. Nos dias de hoje, era o que mais faltava deixá-los morrer à fome”, referiu. Mais do que isso, “não há qualquer preocupação, são pessoas que estão ali vai fazer 72h fechadas dentro de uma camião, parados, sem sair no mesmo sítio, na véspera de Natal”.

Natal longe de casa, no Reino Unido ou em trânsito

José Manuel Carvalho, que está em Manston com o filho, Filipe Carvalho, também motorista, diz que ainda não viu nenhuma equipa a realizar testes à covid-19 no aeroporto, que devia ser uma estação de testagem ao mesmo tempo que serve de estacionamento de emergência para uma parte dos camiões. Passar o Natal em casa já está fora de questão, e a preocupação agora passa por saber quando conseguem sair do Reino Unido.

“Não sei quando vou sair daqui. Hoje já não, talvez amanhã, e vamos ver se vai ser mesmo amanhã. Desespero completo. É triste, lamentável, vimos abastecer os mercados e depois fazem esta retenção sem aviso prévio”, lamenta o motorista, que conta que a família está “muito desanimada”. “Contavam que chegasse a Portugal antes do Natal”.

Na melhor das hipóteses, José Manuel Carvalho conta chegar a casa apenas na próxima semana.

“Na próxima terça-feira, quarta, por aí. Ainda temos de carregar o carro. Mete-se o Natal, o fim-de-semana... Só teremos carga lá para segunda-feira, é o mais provável. É uma situação muito complicada. Uma viagem que podíamos fazer numa semana, vamos demorar 15 dias. E não sei, vamos ver como passa.”

Outra preocupação são os mantimentos disponíveis para a viagem. Com mais uns quantos dias na estrada, o que foi preparado para um certo número de dias “vai acabando”. Mais ainda, quem está no aeroporto fica limitado porque é “expressamente proibido cozinhar nos limites da pista do aeroporto”, segundo foi dito a Filipe Carvalho.

Um prelúdio do que pode acontecer em Janeiro

Pedro Polónio alerta que a situação extraordinária provocada pelo encerramento das fronteiras, “um autêntico sequestro”, vai demorar vários dias a resolver, pelo menos “até ao fim-de-semana”. Para as empresas, o prejuízo está na ordem dos 400 euros diários por cada camião, mas o presidente da Antram diz não querer focar-se nas perdas financeiras. “O mais importante é a questão humana de ter ali dez mil pessoas que estavam apenas a trabalhar, não fizeram mal nenhum”.

O dirigente sublinha que as filas de camiões não são uma coisa nova, mas que esta situação serve de aviso para o que poderá acontecer a partir de 1 de Janeiro, caso as negociações do “Brexit" não cheguem a bom porto: se não houver acordo quanto à passagem dos camiões, o problema pode assumir proporções que “colocam completamente em causa o normal abastecimento” do Reino Unido.

“O que se está a passar no abastecimento ao longo do último mês é o mais grave. Não começou agora. No último mês foi gritante a quantidade de camiões atacados por clandestinos, a quantidade de horas para conseguir entrar em Inglaterra e, sobretudo, para sair de Inglaterra. Estamos a falar de camiões a demorarem 10, 11 horas”, conta.

Dezembro viu um aumento do fluxo de bens para “antecipar eventualidades” do início do ano. O maior caudal, somado ao facto de no Inverno a travessia ser mais difícil, provocou congestionamentos que tornam inviável fazer transportação para o Reino Unido. “Um mês aguenta-se, mas a normalidade não pode ser a anormalidade do último mês”.

E o problema não está no número de camiões, mas no volume de tarefas.

“Agora um camião não tem de parar até entrar no barco. Se o obrigarem a parar por questões administrativas, aduaneiras e afins, o impacto é brutal”, explica. “Em um, dois dias criam-se filas de 30, 40 quilómetros”. Do lado inglês isso é incómodo, mas do lado francês é uma situação “grave”.

“Aquilo é praticamente uma zona de guerra. Os clandestinos [migrantes] atacam camiões para irem para o lado inglês. Estragam a mercadoria. É por isso que os camionistas têm de dormir longe, não podem dormir perto de Calais para tentarem não parar. Agora imagine-se o que é obrigá-los a parar porque há camiões em excesso”, argumenta Pedro Polónio.

Há, por isso, um “risco real" de que as operações para o Reino Unido se tornem inviáveis. “Esperemos que quem nos governa [a União Europeia] consiga perceber o que está aqui em jogo”, avisa.

Esta quinta-feira, em resposta ao PÚBLICO, fonte do gabinete da secretária de Estado das Comunidades Portuguesas, Berta Nunes, detalhou que está já no local uma equipa de quatro pessoas do Consulado-Geral de Portugal em Londres, que levou alimentos e bebidas para apoiar os motoristas portugueses retidos.

A equipa é liderada pelo cônsul-geral adjunto, José Constantino, e inclui mais três elementos do consulado. De acordo a mesma fonte, a secretária de Estado das Comunidades Portuguesas “já teve a oportunidade de falar ao telefone com motoristas que se encontram no aeroporto de Manston para se inteirar pessoalmente da situação e dos problemas com que se deparam, tendo em vista o apoio a estes nacionais”. 

Para já, o Governo diz que não é possível indicar quando a situação estará resolvida. Não obstante, o gabinete da secretária de Estado das Comunidades Portuguesas afirma que “as informações recebidas do terreno apontam para progressos visíveis na testagem e escoamento” e acrescenta que “há já conhecimento de motoristas portugueses testados e a caminho do Eurotunel”. com Liliana Borges

Actualizada às 15h37 de 24 de Dezembro com as declarações do gabinete da secretária de Estado das Comunidades Portugueses

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